Como a política externa norte-americana, nos anos 1950, preparou ditaduras na América Central

Por: Mário Beja Santos

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Mário Beja Santos

É um romance admirável, lê-se e pasma-se como um dos maiores escritores vivos esgravatou e romanceou fontes seguras de um golpe sórdido autorizado pela administração Eisenhower para privilegiar os negócios da United Fruit na Guatemala. A CIA pôs em execução um golpe militar encabeçado pelo coronel Castillo Armas para provocar a queda de um governo reformista, o de Jacobo Árbenz. Golpe meticulosamente preparado intoxicando a opinião interna e a norte-americana, acusava-se Árbenz, um líder moderado, liberal e sem nenhuma ligação ideológica ao comunismo, de que estava a encorajar a entrada do comunismo soviético no país e no continente. É um romance espantoso, que viaja num trepidante vaivém, o Prémio Nobel da Literatura de 2010 funde com mestria a realidade com duas ficções: a do narrador que livremente recria personagens e situações; e a que foi desenhada por aqueles que quiseram controlar a política e a economia de um continente, manipulando a sua história, pondo e dispondo da vida de países que tentaram caminhos alternativos à exploração feudal e ao capitalismo mais alarve. É esta a essência da trama de Tempos Duros, por Mario Vargas Llosa, Quetzal Editores, 2020.

No final da obra, o autor reflete sobre as consequências desta sórdida ingerência norte-americana, uma asneira que saiu profundamente cara a Washington e aos seus negócios: fez recrudescer o anti-norte-americanismo em toda a América Latina e fortaleceu os partidos marxistas, trotskistas e fidelistas; serviu para radicalizar e empurrar o Movimento 26 de Julho de Fidel Castro para o comunismo (Che Guevara vivia nessa altura na Guatemala, quando se deu a invasão, provavelmente tirou dali algumas conclusões que resultaram trágicas para Cuba, caso dos fuzilamentos massivos de militares). “Feitas as contas, a intervenção norte-americana na Guatemala atrasou a democratização do continente e custou milhares de mortos, pois contribuiu para popularizar o mito da revolução armada e do socialismo em toda a América Latina. Jovens de pelo menos três gerações mataram e deixaram-se matar por outro sonho impossível, ainda mais radical e trágico que o de Jacobo Árbenz”.

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O delineamento da trama narrativa agarra o leitor do princípio ao fim. Tudo começa c

om a United Fruit, numa reunião aprova-se a ideia do golpe, era preciso vender a toxina de que a Guatemala era o Cavalo de Troia da União Soviética, corria-se o risco de a Guatemala ser o primeiro satélite comunista no novo mundo. Com uma perversidade exemplar, os senhores da United Fruit prepararam a intoxicação nos meios de comunicação social. “A ideia de

que a Guatemala está prestes a passar para mãos soviéticas não deve provir não deve provir da imprensa republicana e direitista dos Estados Unidos, mas sim da imprensa progressista, aquela que é lida e ouvida pelo democratas”. Logo se convencionou que era preciso trabalhar com sigilo, para que os meios de comunicação não se sentissem utilizados. Esta foi a decisão tomada numa reunião da United Fruit em Boston. Começaram a aparecer de repente na imprensa norte-americana reportagens que, no The New York Times ou no The Washington Post, ou no semanário Time, apontavam para o perigo crescente que significava para o mundo livre a influência que a União Soviética estava a ter na Guatemala. A intoxicação correu bem, os correspondentes internacionais arribaram à Guatemala, a histeria anti-comunista foi crescendo, a United Fruit opunha-se ferozmente à reforma agrária e à abertura liberal dos mercados, não queria perder o monopólio da banana. Anunciou-se que a União Soviética tencionava construir uma base de submarinos na Guatemala. Mesmo não havendo um só soviético na Guatemala encenou-se que o perigo soviético estava iminente. Não esqueçamos que estávamos no auge da Guerra Fria, Foster Dulles,

o responsável pela política externa, enviou um novo embaixador, John Emil Peurifoy, que se notabilizara no esmagamento dos comunistas na guerra civil grega.

Dado o quadro político, arranca o romance num ambiente típico latino-americano, iremos ouvir falar de Miss Guatemala, a filha adorada de um riquíssimo guatemalteco será renegada pelo pai quando apareceu grávida de um médico 28 anos mais velho do que ela. Os episódios encadeiam-se: assassinos a caminho de um magnicídio, vamos entrar no mundo do presidente Árbenz, a sua preparação militar, a sua vida familiar, os seus sonhos para um desenvolvimento da Guatemala; a par disso, a figura complementar do coronel Castillo Armas, os seus complexos, as suas invejas, o seu anacronismo; a importância que teve no golpe o ditador Trujillo, que usou Castillo Armas como seu testa de ferro e preparou a sua morte; embrenhamo-nos na luta de classes que faz da Reforma Agrária a espoleta do golpe; Miss Guatemala contracena em vários palcos, irá muito mais tarde receber um prémio da CIA que a faz sair da Guatemala em período de execuções, para trás, numa Guatemala de fuzilamentos e expurgos, fica o seu marido, o doutor Efrén García Ardiles, foi preso e escapou milagrosamente da execução. “Em apenas duas semanas, a Guatemala tinha mudado de pele. Todos os vestígios do regime de Jacobo Árbenz pareciam desaparecidos e, em sua substituição, tinha surgido um país em estado frenético em que a caça aos comunistas verdadeiros ou supostos era a obsessão nacional. Quantas pessoas se tinham refugiado nas embaixadas latino-americanas? Centenas, talvez milhares. E, durante cerca de três meses, o governo, dizia-se que por exigência da CIA, recusou-se a dar salvos condutos àqueles refugiados, com argumento de que eram assassinos e agentes comunistas que podiam levar consigo documentos comprometedores que provavam as intenções da União Soviética de fazer da Guatemala um satélite”. Na Guatemala, com Castillo Armas, tudo volta atrás, a United Fruit recebe as terras que a Lei da Reforma Agrária nacionalizara, foi abolido o imposto aos proprietários de latifúndios, nacionais ou estrangeiros. “A polícia e o Exército recuperavam, à força onde fosse preciso, as quintas que tinham sido entregues a meio milhão de camponeses, e suprimiam-se as cooperativas agrícolas, as associações de camponeses e – o que era um absurdo – até um bom número de confrarias encarregadas de cuidado dos santos patronos das povoações, criadas nos últimos dez anos”. A Igreja Católica da Guatemala envolveu-se a fundo neste plano de retrocessos. Mas Castillo Armas era somente um peão de brega, Washington quer um homem da sua total confiança e vai tê-lo. Assistiremos à ascensão e queda de torcionários dos Serviços Secretos e de Informações, um deles será convidado a ir trabalhar com o ditador do Haiti, ele e a família terão um fim horrendo.

É a tragicomédia do poder volátil naquele mundo de ditaduras de caudilhos como Trujillo, Somoza ou Papa Doc, o ditador que se segue é tão ou mais sanguinário que o anterior e as experiências democráticas e de procura de justiça naquela América Central estavam condenadas a ser substituídas por ditaduras. Vargas Llosa nunca se encoleriza, é estritamente documental e desenha rigorosamente estas figuras monstruosas, caso do embaixador John Emil Peurifoy que traz a missão de derrubar uma democracia: “Conseguiu ser embaixador na Grécia, quando as guerrilhas comunistas traziam o país a ferro e fogo e estavam prestes a derrubar a monarquia e a alcançar o poder. Esteve lá três anos. Foi a sua época de glória. Misturando as ameaças com uma capacidade inaudita para a intriga e um olfato geralmente certeiro, um espírito prático bem como uma coragem temerária, arranjou as coisas de maneira a armar uma junta militar, apoiada pela Coroa e equipada com armas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, que derrotou as guerrilhas e instalou um regime autoritário e repressivo no país. Ganhou então a alcunha do Carniceiro da Grécia”. Pensa que vai dar ordens a Árbenz e este é perentório: “Começamos mal, embaixador. O senhor está muito mal informado. Nesta lista só há quatro deputados do Partido Guatemalteco do Trabalho, que se declara comunista, embora a maioria dos seus dirigentes e o seu punhadinho de militantes não saibam muito bem o que é isso do comunismo. Os restantes são tão anti-comunistas como o senhor”.

É um romance soberbo que nos leva a interrogar como é que a política externa dos Estados Unidos está engrenada para preparar grandes atoleiros e a instabilidade à escala mundial.

De leitura obrigatória.

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Mario Vargas Llosa

 

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