Amigos de infância reencontram-se cerca de 50 anos depois
Crónica sobre a infância de seis soudoenses.
Foi um momento vivido com grande emoção, para o grupo que decidiu juntar-se neste domingo, no Restaurante Requinte, em Tomar, para recordar a infância já longínqua, vivida na aldeia de Soudos, de onde todos são naturais.
Já não estavam todos juntos há mais de quarenta anos, apesar de alguns se verem com regularidade, porque têm laços familiares; Lucília (Cilita) Cotovio e Alexandre Cotovio são irmãos e Maria Adelaide (Laidinha) e Paulo (Parrita) são hoje marido e mulher.

Eram todos vizinhos e para além das casas de uns e outros, partilhavam a rua nas brincadeiras, naquele tempo passava-se mais tempo na rua a brincar do que em casa. A rua era o nosso mundo onde dávamos azo à imaginação e tudo nos pertencia. O tempo, a estratificação do grupo, onde a mais velha ensinava os mais novos, como por exemplo a saltar à corda, a montar festivais da canção, nas corridas de bicicleta (o pai da Ana Maria tinha uma loja e oficina de bicicletas que proporcionava à filha uma bicicleta, que acabava por ser mais usada pelas amigas do que pela dona. Naquele tempo ter uma bicicleta era um privilégio a que a maioria das famílias não podia dar-se a esse «luxo»), nos jogos da apanhada, da macaca, do elástico, ou simplesmente quando a fome apertava e corríamos à tangerineira da Mariazinha (árvore que ainda hoje existe) e comíamos carradas de tangerinas, até ouvir a mãe da Mariazinha ralhar que nunca conseguia apanhar tangerinas porque eram comidas por nós. Saciávamos a fome com aquele aroma agridoce das tangerinas, no tempo dos figos, eram com figos, maças, uvas o que a estação do ano colocava à disposição nos quintais das casas. Bebíamos água em qualquer sítio e resistíamos às viroses como uns valentões.

Ainda hoje recordo, a hora da ordenha na casa da avó da Mariazinha (tinha uma leitaria), eu segurava o rabo da vaca para que a mãe da Mariazinha pudesse ordenhar, pois a vaca afastava as moscas com o rabo. A neta (Mariazinha) chegava munida de uma caneca e diretamente das tetas da vaca enchia a caneca, que bebia com grande satisfação. Inacreditável nos dias de hoje.
Pois naquele tempo a brincadeira conjugava-se com pequenas tarefas que nos eram incumbidas logo desde pequenos, limpar o pó, apanhar figos, lavar loiça, passar roupa a ferro, fazer bolos (na padaria dos pais da Maria Adelaide), aprendíamos um pouco de tudo. O que mais gostava era o momento de aparelhar a mula à carroça na hora de ir regar a horta. Era necessário levar motores e mangueiras. Era uma festa a viagem de casa até à horta, que distava cerca de um quilómetro, sempre com a boa disposição da mãe da Mariazinha. Aquela água tão leve e transparente que corria nas regadeiras que tornava a terra tão macia, onde gostava de enterrar os pés. Depois chegava a hora da apanha dos figos, a Mariazinha choramingava não gostava de apanhar figos e a mãe desatava numa ameaça desenfreada contra a filha, descarregava nas palavras a força da pancadaria que nunca lhe dava, pois a sua menina, que amava infinitamente, era o seu maior tesouro, pois foi a única que sobreviveu de três filhos que teve.
Era gente de muito trabalho, mas amiga de partilhar, e lá fomos crescendo entre brincadeiras, idas à escola, à catequese, onde o maior ensinamento era sem dúvida «amar o próximo como a nós mesmo» e a ouvir histórias aos adultos. Também pregávamos partidas como aquela de telefonar «às escondidas» em casa da avó da Mariazinha, que na altura era das poucas casas que tinha telefone; telefonávamos para uma senhora que vivia numa aldeia vizinha, que devia sofrer de algum trastorno psicológico porque se apresentava sempre com um aspeto assustador e muito descuidado, sobrevivia a construir e a vender capoeiras em madeira para coelhos ou pintainhos. Então, ligávamos a encomendar uma gaiola para mosquitos. E pronto, do outro lado da linha lá vinha um chorrilho de asneiras que nos levava a desligar o telefone. Que a D. Guilhermina nos perdoe tal malvadeza.

Naquele tempo tudo era vivido com muita intensidade, as brincadeiras que nos deixavam esgotados e mal chegávamos a casa adormecíamos exaustos de cansaço. Lembro-me das tardes de cinema vistas na coletividade da terra, porque eram raras as pessoas que tinham televisão. Grandes filmes de cowboys vistos numa televisão pregada junto ao teto para que toda gente presente no salão pudesse assistir. Lembro-me de vestirmos as melhores roupas ao domingo, e de, só nesse dia, darem-nos uma moeda para podermos comprar sugus. Ficávamos extasiados a comer o pacote de sugus, ninguém se mexia até ao último quadradinho.
Mas também havia uma vida cultural paralela interessante, os teatros, que os mais velhos organizavam no Salão da Igreja, as campanhas de Natal em prol dos mais desfavorecidos, porque havia gente a passar muito pior que nós. Da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, onde a cachopada de todas as idades fazia fila para requisitar livros e levá-los para casa; dos filmes que o padre Eugénio, alemão (tinha uma máquina de projetar que trouxe da sua terra) projetava para os jovens sobre a resistência dos primeiros cristãos. Lembro-me das noites de Natal vividas com tanta inocência e intensidade. A recolha do musgo pelos campos, a montagem do presépio nas nossas casas, a espera infinita do menino Jesus na noite de Natal (descia pela chaminé onde colocava um presente no sapatinho), enquanto as mães batiam a massa e a deixavam levedar para os sonhos, os bolos de massa, os coscorões as fatias douradas (paridas), a ceia de Natal feita com uma boa canja e galinha corada no forno, da Missa do Galo com a estreia de um novo fato, a alegoria à vida com o nascimento do menino e, no final, o beijo no pezinho da imagem do Menino Jesus. Vivências de um tempo que fez de nós homens e mulheres de hoje, pena que na sangria de uma sociedade consumista tornasse estes momentos histórias do nosso passado.
Neste encontro recordámos um pouco das nossas infâncias, como se fosse proibido esquecê-las. Esse tempo vivido há 50 anos, mas que continua dentro de nós como uma marca que nos acompanha no perfil da nossa personalidade, ou ainda como se tivesse sido ontem.
Ficou a promessa de um novo encontro para o ano, talvez com a presença já dos filhos/as, como testemunho que a nossa vida prossegue agora aqui…
Obrigada a todos por terem vindo!
Isabel Miliciano

