
Batem as 19 horas no relógio, ao longe o sol deita-se com a Serra de Aire e Candeeiros, para lá do horizonte, e pincela o céu de cores avermelhadas entre o laranja e o vermelho, onde o amarelo está prisoneiro das cores que vão mudando.
Elídio Silva chega com um saco, de onde tira uma toalha de padrão bem português, coloca uma tábua em cima de dois cavaletes e improvisa uma mesa, à porta do seu Moinho, onde ressalta metade de um saboroso queijo de Alcains, de sabor viciante, quanto mais se come mais apetece comer. Ao lado umas fatias de pão escuro, apropriado ao momento e um vinho branco da sua lavra, de fazer inveja a qualquer grande marca. Há ainda umas broas e um melão comprado na estrada de campo da Chamusca que fez jus à sua origem. Tudo bem português, como a paixão do Elídio, Comandante de navios durante uma vida (serviu na Marinha Portuguesa 44 anos e uns meses), agora é Comandante das velas do seu velho Moinho. Só um homem do mar que sabe entender as velas, poderia estar ao «leme» deste Moinho, na Peralva, localidade da freguesia de Paialvo, no concelho de Tomar.
Sentámo-nos à mesa improvisada, mas com grande classe que a mesma oferecia, Elídio Silva, homem que a vida talhou nas dificuldades da sua atividade militar, quando andou por terras de além-mar, numa guerra colonial que muitas marcas deixou a milhares de jovens portugueses da sua geração. Um dos episódios que nos conta desse tempo, foi com grande emoção que assistiu ao último hastear da bandeira portuguesa, que aconteceu num dos fortes africanos, momento reservado a muito poucos, porque a independência já estava decidida. “Foi a última vez…” E a última vez nunca mais se esquece. Como também relembra, após a independência, rebentou a guerra civil na ex-colónia onde se encontrava e não se sabia a quem deveria entregar-se o poder, a qual dos movimentos revoltosos? Acabou-se por entregar o poder ao povo, confessa com a mesma lucidez como se tivesse acontecido ontem.
Páginas do livro da vida, que Elídio recorda com o olhar no horizonte, quem como procura uma razão para tantos porquês. Porquê assim? Porque teve de ser assim? Talvez a história tenha uma explicação ou várias, quem sabe.
Mas hoje, este lugar, e o seu Moinho fazem parte de outra história. Conta-nos que existia aqui um velho Moinho em ruínas, que chegou a ser do seu bisavô, mais tarde passou ainda para o avô e pelas vicissitudes da vida acabou por ficar «perdido» no tempo e fora da sua família. Quando deixou a Marinha, voltou à terra e queria recuperar o Moinho que lhe habitava a memória. Comprou o terreno onde se encontra o Moinho e restaurou-o. Durante um mês foi sujeito a obras profundas que o ergueram da «morte». Hoje, é um ponto de encontro de amigos, a quem Elídio estende a toalha e serve o queijo e o vinho. De gente curiosa que deseja ver um Moinho, ou de viajantes em atividades lúdicas pelo lugar.
Provavelmente há mais Moinhos recuperados por esse país fora, mas este é único, porque aqui consegue-se aprender o ciclo do pão, desde da sementeira do trigo ao pão estaladiço e quentinho que salta de um qualquer forno a lenha.
Nos terrenos contíguos ao Moinho, que fazem parte da propriedade, vários hectares, Elídio faz a sementeira do trigo, por volta do mês de novembro. A semente é lançada à terra. Durante os meses que se seguem espera-se uma boa colheita, mas depende sempre das épocas da chuva, se o inverno foi ou não mais chuvoso. Por exemplo, o último inverno foi bastante chuvoso o que provocou o crescimento de muita erva juntamente com o trigo. Depois em junho vem a colheita. Elídio tem uma máquina que corta e junta em pequenos molhos o trigo, (antigamente eram as mulheres que ceifavam o trigo) transporta-o para a sua eira onde fica a secar.
Depois de seco, chega a vez dos molhos serem lançados na debulhadora (máquina que separa os bagos de trigo da ramagem, sendo logo separado, trigo para um lado, palha (os sobrantes da ramagem) para outro, que depois enfarda numa enfardadora no próprio local.
A originalidade do processo está, todas estas fases são realizadas pelo Elídio, desde da sementeira do trigo, à recolha, ao transporte, à debulha, que apesar dos seus 72 anos, assume com total vitalidade e engenho.
As máquinas que tem, a debulhadora e a enfardadeira, máquinas de grande porte, comprou-as praticamente em sucata, passou meses, noites sem fim, a recuperá-las, com a dificuldade de já não haver no mercado correias para o seu funcionamento, no final pintou-as e são verdadeiras peças de museu que trabalham como se o tempo não tivesse passado por elas.
Ninguém imagina, a capacidade de engenho de Elídio que para produzir energia para as máquinas trabalharem ligou as correias que movimentam todo o sistema a dois tratores, que quando os coloca a trabalhar, e liga as máquinas, o sistema funciona plenamente e inicia-se a produção. Uma verdadeira obra de engenharia. Quer os tratores, um deles com mais de 70 anos, como as máquinas encontram-se em bom estado de conservação e só quem sabe acredita, que estas renasceram da morte a que estavam condenadas.
Após a debulhadora fazer o seu trabalho, os grãos de trigo podem ainda passar por um suposto «crivo», que não é um crivo na verdadeira aceção da palavra, mas antes uma Tarara, que tem mais de 100 anos e faz a seleção dos grãos por tamanho. Após este processo chegou a hora do trigo ir para o Moinho, onde será moído com a força do vento que faz rodar as velas, ao som que ecoa dos búzios e buzinas colocadas nas varas. A sua função é emitir um som que indica ao moleiro o sentido do vento.
Quando vemos tudo isto em movimento e ouvimos o som que ecoa em nosso redor, parece que estamos num filme, mas não é, é real, graças ao engenho e arte do Elídio, que já não sabe viver sem o seu Moinho. Diz com orgulho, toda esta engrenagem, a que chama o ciclo completo do pão, é único no país. Os campos de trigo, as máquinas, a moagem e o pão, tudo numa simbiose perfeita. Um verdadeiro museu vivo a céu aberto.
Isabel Miliciano
Nota da redação: Agradeço a Carlos Silva que amavelmente combinou com Elídio Silva este encontro, e a quem agradecemos as excelentes fotos que nos cedeu para publicar neste artigo. Obrigada Carlos Silva e Elídio Silva por um final de tarde inesquecível.
De referir que Elídio Silva está sempre recetivo a visitas de grupos e outros que queiram conhecer o Moinho da Peralva.