As Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem de Constância não voltarão a ter o brilho dos olhos de António Lopes, conhecido por todos pela a alcunha d’ O Diabo Alma. António Lopes deixou-nos no passado dia 8, foi a sepultar no dia 9 de julho no cemitério de Asseiceira. Tinha 77 anos e tudo indica que terá sido vítima de doença.
António Lopes residia na Linhaceira e apesar de viver na Rua de Santa Teresinha era um verdadeiro devoto da Nossa Senhora da Boa Viagem. Acorria todos os anos à vila de Constância, no seu barco ancorado na Foz do Rio (Nabão) e descia o Zêzere até à Vila de Camões, num verdadeiro ato de fé, de agradecimento e homenagem à padroeira da Vila Poema, nome pelo qual também é conhecida Constância, pela sua ligação ao poeta maior de Portugal, Luís de Camões, e pela sua disposição geográfica, «debruçada» na confluência de dois rios, o Zêzere e o Tejo.
Mas António Lopes nunca ia sozinho, levava alguns amigos com ele, tantos quanto o barco suportava, e em anos de grandes chuvadas com as águas mais agitadas no rio, Diabo Alma desafiava o rio. Trajado a rigor, de acordo com os trajes genuinamente portugueses, de pescador, e com um altar na proa do barco, onde a imponente imagem da Nossa Senhora da Boa Viagem «abria» as águas do rio para a comitiva do Diabo Alma passar. Assumia-se como representante do concelho de Tomar e logo que chegava a Constância chamava atenção de quem assistia à chegada de tão nobre embarcação.
Era um dia muito feliz na vida de António Lopes, cumpria solenemente esta viagem todos os anos. Mas quem se deita ao mar avia-se em terra, também Diabo Alma fazia jus a esta máxima popular. A caixa com febras, pão e vinho seguiam no barco e depois da receção no cais de Constância, o seu grupo acendia o fogareiro, era a hora de partilhar a «bucha» como quem sabe, que a devoção à Senhora de Constância é alimento da alma, mas o corpo depois de várias horas no rio também precisa de se saciar. Era sempre um dia feliz na vida do Diabo Alma. Em novo andou emigrado por terras Suíças e mais tarde voltou à terra para junto da família para viver a sua merecida reforma.
Diabo Alma era um homem de uma alegria contagiante, sempre com boas histórias para contar, e numa delas também fui protagonista. Combinámos ir às Festas da Boa Viagem a Constância, queria experienciar a descida do rio, viver um dia diferente, e no final teríamos a reportagem, uma história para contar com tantas emoções que ela envolve.
Fizemos fotos à partida, o grupo com grande entusiasmo embarcou na aventura, mas a meio do percurso, alguns remoinhos no rio provocaram dificuldades, e um dos remos partiu-se, ficámos à deriva, fomos arrastados pelo rio abaixo e acabámos encalhados num dos pilares do viaduto da A23, que tem dezenas de metros de altura, e a cerca de um quilómetro do cais de Constância. Gritámos, mas ninguém nos ouviu, ao longe soava a música ambiente da festa e os outros barcos não passavam por este braço do Zêzere. Vinham pelo Tejo abaixo e não pelo Zêzere. Já meio desesperados, conseguiu-se contactar os responsáveis da Câmara de Constância (que até então não atendiam os telemóveis) para nos rebocarem. Sem um remo era impossível orientar o barco. Após longos minutos de espera fomos salvos por uma equipa de apoio ao evento. Julgo que a partir deste dia, Diabo Alma adicionou um motor ao barco.
Mas António Lopes também era conhecido pela pesca à lampreia nesta região, na Foz do Rio, quando esta espécie era abundante. Agora escasseiam. Também na sua casa abria as portas aos amigos, para o tão amigável copo e o petisco da ordem. Um homem do povo, de coração grande, amigo do seu amigo e sabedor das «manhas do rio», onde aprendeu muito novo com os seus familiares a pescar para ajudar a viver.
Provavelmente, neste momento, já se encontrou com a Senhora da Boa Viagem, a quem jurou devoção até ao fim dos seus dias, ele e ela lá saberão o porquê.
Tenho a certeza que as águas do Zêzere e Constância vão sentir a sua falta!
Até sempre Diabo Alma!
Isabel Miliciano