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Crónica da Europa: O Apagão e Bruno Latour

A esta hora já estará quase tudo dito sobre o Apagão de 28 de Abril.

Mas há coisas e riscos a sublinhar. O Grande Silêncio dos Políticos neste Apagão ilustra a falta de comunicação entre Política e Ciência. E isso coloca a nossa vida em risco.

 A 22 de Abril os media celebraram que a rede elétrica de Espanha tenha operado só com energias renováveis pela primeira vez na história; os gestores das redes compraram mais barato as renováveis disponíveis. E ainda bem, porque a humanidade precisa das energias renováveis.

 Às 11h35 de 28 de Abril, (Portugal) a energia apagou-se na Península Ibérica e partes de França. A tecnologia elétrica da vida moderna – internet, comboios, elevadores, aeroportos, telemóveis, semáforos, caixas de lojas e multibanco, bombas de gasolina – abandonou-nos.

A Red Eléctrica revelou que uma “oscilação muito forte na rede” que opera com a frequência de 50Hz obrigou a rede a desligar-se do sistema europeu, levando ao colapso do fornecimento de energia em Portugal.

Nas redes eléctricas tradicionais com centrais a carvão, turbinas a gás, e turbinas de barragens, ou reatores nucleares, as pequenas perturbações eram absorvidas pela inércia física dos sistemas. A pesada massa rotativa dos geradores atua como um amortecedor, resistindo a mudanças rápidas de frequência e estabilizando a rede. Mas num sistema elétrico exclusivamente com painéis solares, turbinas eólicas e inversores, quase não existe inércia física.

O que sucedeu em Espanha foi uma ilustração da teoria do caos. “Uma borboleta na Amazónia… etc.” Faltou inércia, faltou rotação mecânica. Um desvio na frequência de 50Hz na onda de tensão de 220 volts—fez disparar todas as centrais e subestações que estavam ligadas e sincronizadas, arrastando a produção.

Os engenheiros evidentemente sabiam, como me disseram os meus amigos Frederico Brotas de Carvalho e Nelson Abreu, um dos consultores sobre o apagão do Texas. A Ciência sabia. Mas a política das redes elétricas está entregue a Gestores. E os gestores dependem dos Políticos.

O risco existia. Na nossa sociedade, como escreveu Ulrich Beck “Os riscos são fabricados de forma industrial, exteriorizados economicamente, individualizados no plano jurídico, legitimados no plano das ciências exatas, mas minimizados no plano político”. E a consciência desses riscos tem vindo a desencadear uma transformação das relações entre natureza e sociedade.

É aqui que entra o nosso Bruno Latour. A Política contemporânea tem de ser reformada em referência ao mundo não humano cuja importância cresce todos os dias. E cresce com desmesura, com vertigem, Cresce mas não tem voz. O mundo da energia elétrica não fala. E não é por falta de agentes humanos; produtoras como a EDP ou Iberdrola, transportadores como a REN, empresas vendedoras como há muitas, distribuidoras como a E-Redes e ainda um regulador nacional que pouco se faz ouvir. Um maravilhoso sistema tecnológico como é tudo isto depende de decisões de políticos e de gestores que não têm tempo para a Ciência, nem para a Ética nem para o Bom Senso.

O Apagão veio uma vez mais pôr à vista de todos que a Política nunca se fez apenas com gente mas também com coisas. Sabemos que a Natureza nos entra portas adentro com o choque ecológico, a luta pelos recursos naturais, as alterações climáticas. Sabemos como a biologia entra com as doenças das vacas loucas, sangue contaminado, alimentos trangénicos, COVID-19. Sabemos das coberturas de amianto, dos resíduos radioativos.

O que vimos no Apagão foi apenas mais um dos riscos a ser combatido com mais resiliência dos sistemas. A ciência sabe bem disto mas o grande Silêncio dos Políticos neste Apagão ilustra a falta de comunicação entre a Política e Ciência.

Por o assunto ser complexo é que é preciso dar voz às coisas. O binómio Política/Ciência é um dos muitos dualismos modernistas – Sociedade/Natureza, Mente/Corpo, Subjetivo/Objetivo são outros- que nos impedem de ver as interações entre ambas as partes e as coletividades.

A democracia escuta muitos tipos de coisas a bater à sua porta, a implorar que lhes deem importância porque integram a Casa Comum: recursos naturais; espécies ameaçadas de extinção; até entidades como bactérias, vírus e priões – que desencadeiam calamidades – são indispensáveis aos equilíbrios do planeta; temos de as escutar, temos de lhes dar voz.

A democracia confronta-se com os apelos dessas coisas mudas, naturais, digitais, tecnológicas, robots e inteligências artificiais. Se estes apelos mudos não forem escutados pela Política, e integrados nas nossas coletividades, vamos mal, diz-nos Bruno Latour.

Convém recordar os tempos trágicos em que um ser humano era tratado como uma coisa, em que um escravo era res nullius. E mesmo abolida a abominável escravatura, essa condição de escravo, de sub-humano regressa com os campos de concentração, com o desprezo dos refugiados, com os crimes de guerra, com a biopolítica dos poderosos.

Convém recordar que os animais já foram considerados coisas, até lhes ser dada voz. Felizmente, foram-lhes concedidos direitos, ou criados deveres humanos para com eles, uma questão de linguagem.

Agora chegou o tempo de que reconhece que a natureza tem direitos, e que os seres robóticos que vão aparecer com a evolução digital também os deverão ter.

Parece estranho mas é assim. A democracia do futuro vai ter de alargar a prerrogativa da representação às coisas naturais e digitais. Esta evolução é como a frase publicitária criada por Fernando Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.

A democracia terá de criar instituições em que os debates técnicos não estejam reservados aos especialistas e a classe política não se isole em bolsas de poder. Energias, transgénicos, vacinas, sistemas financeiros, urbanismo, guerra e paz, são temas que a todos interessam, logo devem ser debatidos por todos. Mas isso são cenas da próxima crónica.

Mendo Henriques

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