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Crónica da Europa: O paradoxo da mentira

As duas maiores potências nucleares do mundo são governadas por dois mentirosos consumados. Não se trata da verdade banal de que todos os políticos mentem de vez em quando, nem de mentiras maquiavélicas feitas em nome da razão de estado. Estamos a falar da mentira sistemática sobre assuntos nacionais e internacionais, permanente, reconhecida, comprovada por polígrafos e fact checker. Trump mente de maneira  e insultuosa num país em que a democracia está a ser desafiada. Putin mente quando é preciso numa sociedade sem democracia real. A América e a Rússia escolheram estas criaturas para as representar e não é por acaso que ambas se entendem.

Em “O Paradoxo da Mentira”, 1939, sobre as ditaduras de Hitler e Estaline, o filósofo Nicolau Berdyaev escreveu que “quem tem medo, defende-se com mentiras”. Quem está assustado, busca armas para se defender. Se o Estado tem medo da sua própria população, mente; e a população participa dessa mentira porque tem medo do Estado. É este paradoxo da mentira que garante a existência de uma sociedade construída sobre a violência e o medo. Terrível.

No universo autoritário, as grandes palavras servem para camuflar, facilitar a conversa. Em 2014, com aquele sorriso escarninho que se lhe conhece, Putin afirmou Não há tropas russas na Crimeia. Todos sabiam que estava a mentir descaradamente. Mas não foi considerada mentira. ‘Todos enganam o inimigo, claro. Enganar o inimigo não é pecado, é uma virtude militar. E com que orgulho Putin admitiu mais tarde que, sim, as tropas russas estiveram na Crimeia!

Na América que é uma república, termo que os nossos amigos do lado de lá do oceano usam para falar de democracia, o Estado age no interesse dos seus cidadãos e não no seu próprio. A separação dos poderes legislativo, executivo e judiciário de governação está incutida em todos desde a infância. E contudo 77 milhões de americanos acabam de eleger pela segunda vez o “mentiroso-mór”.

Não se pode dizer que não o conheciam. Quando o The Washington Post era um jornal sério, antes de ser amordaçado pelo bilionário Jeff Bezos, mantinha um fact checker que indicava 30.573 inverdades de Trump, ou afirmações factualmente duvidosas, durante a primeira presidência — uma média de 21 alegações erróneas por dia. Agora no segundo mandato Trump começou a mentir 15 minutos depois de ser presidente ao dizer que “acabará a cruel, violenta e injusta “armamentização”  do departamento de justiça e do governo”. É escusado insistir na cascata de alegações falsas e enganosas sobre imigração, economia, veículos elétricos, Canadá, Canal do Panamá, Gronelândia, a derrota eleitoral em 2020 e a insurreição de 6 de janeiro que se seguiu e sobre a paz na Ucrânia que faria em um dia.  É doloroso de seguir tanta desvergonha.

Mas o esplendor do paradoxo da mentira é que os 77 milhões de eleitores MAGA ainda não estão muito preocupados: avaliam Trump não pelo que ele diz  nem pelo que ele faz em prol deles; avaliam-no sobretudo pelo que ele faz contra as ideias e os grupos sociais de quem não gostam. E essa é uma sociedade construída sobre a violência e o medo. É por isso que vêm Tump como um vencedor que alimenta os ressentimentos da maioria e mantém nos cargos os congressistas republicanos Aos maus, o tormento dos “outros” ajuda-os.

Do lado de Puti, acusa-se o povo russo de ser passivo e cúmplice na invasão da Ucrânia. Como escreveu Mikhail Shishkin o século XX trancou a história russa em uma fita de Moebius. Por duas vezes, em 1917 e 1991, o país tentou construir uma democracia, fazer eleições, mas acabou como um novo império. A Rússia é um país maravilhoso para uma minoria de canalhas que a governam, e para uma minoria de guerreiros que os combatem: mas os guerreiros como Nemtsov, Navalny e outros, não têm sucesso e acabam presos, mortos, exilados. Quem não é guerreiro nem canalha, e não quer apodrecer na prisão nem alinhar com a corrupção, e apenas quer viver com dignidade, trabalhando pelo pão de cada dia, fica sem escolha. As pessoas comuns, que não querem a estrutura criminosa nem desejam marchar para a revolução, fazem a “emigração interna” e desligam-se dos destinos do país, tornam-se apolíticos, ou emigram mesmo.

O destino dos dois mentirosos vai depender das respetivas sociedades que têm capacidades muito diferentes para resistir à mentira sistemática.

A política de Trump movida pela luta contra o “inimigo interno” (referido pelo vice-presidente Vance em Munique) desviou-se da ambição violenta de moldar o mundo à sua imagem mas ninguém sabe quando tempo vai resistir à vaga interna de insatisfação.

A política de Putin movida pelo medo de turbulência interna e o medo da interferência estrangeira recebeu uma extensão do prazo de validade; mas o seu destino é cada vez mais frágil porque criou uma economia ao serviço de uma guerra que a Ucrânia não o deixa ganhar. Entre os que agora são apáticos vai subir em flecha os que deixarão de aceitar o paradoxo da mentira.

Mendo Henriques

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