Trump e os seus sequazes continuam a fazer tremer o mundo – no dia 3 de abril com as taxas alfandegárias – e nós continuamos agarrados a esse semicírculo mental que reproduz o famoso hemiciclo parlamentar que data de 1789? Não temos melhor para ver as brutais transformações em curso do que essa imagem do arco das forças políticas, com a sequência extrema-esquerda, esquerda, centro, direita, e terminando com a extrema-direita?
Esse arco inventado quando os políticos eleitos se dispunham dessa forma para votar, organiza quase todos os partidos, discursos, classificações, sondagens, investigações científicas; serve para todas as eleições e narrativas históricas, e ainda domina as reações mais viscerais. Quanto terror e confiança depositado nas expressões “Direita” e “Esquerda”: “Mas ele é um tipo de extrema-direita!”, “Cuidado com ela, é uma esquerdista!”. Que se passa connosco? Não temos uma imagem melhor para avaliarmos o mundo?
Felizmente temos e foi inventada por Bruno Latour, um dos obscuros mas mais significativos filósofos e cientistas sociais do nosso tempo. Eu estava a escrever sobre ele numa manhã de domingo de 2022 quando vi na net a notícia do seu falecimento. Tive um choque. Mas entre as coisas boas que nos legou está um seu boneco simplório de 2017, assente numa profunda investigação. Utilizo-o acima, com modificações, para me ajudar a ver o que se passa.
Para simplificar, suponhamos que até às últimas décadas do século XX, a humanidade aceitou seguir um projeto de globalização e de modernidade onde cada poderia encontrar o seu lugar graças a um vetor que ia do Local em direção ao Global. Era em direção ao Globo, com um G grande, que tudo caminhava; o económico, moral, o científico, uma flecha do tempo em direção ao futuro. Esse Globo arrebatou gerações por ser sinónimo de riqueza, emancipação, conhecimento e de acesso a uma vida com confortos.
Para o alcançar, era preciso abandonar o Local, com letra grande, para não se confundir com um habitat primordial, uma terra ancestral, algum solo de onde autóctones tenham surgido. Nada há de aborígene, ou nativo, nesse território reinventado à medida que o mundo do McDonald’s e do Telemóvel extinguia as pertenças. Era Local só por contraste. Um anti-Global.
Uma vez identificados esses dois polos, era possível traçar uma frente de modernização; interessava avançar a qualquer custo: deixar a província, abandonar as tradições, mudar de hábitos, de religião, de “género” e “avançar”, participar do desenvolvimento e, enfim, desfrutar do mundo. Por volta de 1989 e 1991, o fim do “socialismo real” parecia indicar que o capitalismo se tornava o único horizonte, e tudo parecia claro quanto à sociedade. Mas foi então que começaram a emergir os primeiros grandes gestos contra as violências cometidas pela globalização, quando o Greenpeace era uma coisa séria e os movimentos sociais e ecológicos reconheciam uma mesma origem. Foi apenas há cerca de trinta anos que começámos a dar conta de que as desigualdades sociais e a devastação ambiental são a mesma luta, como veio dizer a Laudato Sí.
Na Cimeira do Rio em 1992, despontava essa nova força ainda não contratualizada: a “Natureza”, o Ambiente, Terrestre, o Ecológico, o Clima. Temos de ser incisivos quanto a este primeiro grande acontecimento que deslocou o eixo contemporâneo da política, até então organizado pelos quadrantes de “sociedade” e “natureza”; a irrupção dos agentes naturais veio modificar a Harmonia pré-estabelecida entre “reacionários” e “progressistas”, entre Esquerda e Direita. Esse impasse precisa ser examinado, se quisermos entender a política contemporânea.
No chamado “Ocidente” estávamos confortavelmente divididos entre avançar rumo ao ideal de progresso ou recuar em direção às certezas antigas; em qualquer dos casos, no imaginado curso da história. Sobre este vetor de orientação simples bastava projetar a velha diferença Esquerda/Direita, herdada do hemiciclo de 1789. Se o assunto era economia, havia uma Direita desejosa de prosseguir em direção ao Global, e havia uma Esquerda (mas também uma Direita mais tímida) que desejava proteger os vulneráveis contra as forças do Mercado. Pelo contrário, no que toca à “liberalização dos costumes”, às questões sexuais, ao aborto, havia sempre uma Esquerda que queria ir mais longe em direção ao Global, e uma Direita (mas também uma Esquerda) que recusava deixar-se levar por esse “caminho perigoso”.
Depois, começaram a surgir os malefícios de uma globalização que beneficiava uns mais do que outros (Stieglitz, Milanovic); surgiram os escorraçados dos seus Locais (Refugiados de guerras) e os do outro lado da frente de modernização (Próximo Oriente, África, Ásia e América do Sul). Eram os arcaicos, os derrotados, os dominados, os excluídos.
Foi com esta globalização-menos que começou a reação e a tragédia de Trump: começou a cismar-se num Local purificado, uma invenção retrospectiva, um território residual. E surgiu a França da Frente Nacional, a Itália da Liga do Norte, a Inglaterra do Brexit e o Make America great again de Trump. Começou uma vertiginosa debandada em direção ao Local que prometia a identidade, a tradição, a proteção, no interior de fronteiras nacionais étnicas com grandes muros. A China e a Índia, super-povoadas, quase impérios continentais permaneciam entre as duas águas do Global do Local. Era assim em 2016 e foi assim até 2021 quando se foi embora o presidente da pandemia que recomendou “injectem-se com lixívia”. Em 2022, veio o presidente da guerra.
As nossas elites políticas e politólogas – presas no semicírculo mental de esquerda e direita e na oposição entre sociedade e natureza – continuaram desamparadas quanto ao que estava a passar: Trump e Putin, tal com os movimentos fascistas dos anos 1930, conseguiram dar voz aos afetos políticos e misturar o sonho de uma grandeza passada – América e Rússia – com ideais de riqueza pessoal e a modernização tecnológica e industrial. (Continua)
Mendo Henriques