Crónica da Europa: Os guardiões do Urso

Por: Mendo Henriques

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Os guardiões do Urso

Se há coisa no mundo que mais dramaticamente mostra como as decisões de uns poucos estão a mudar o mundo para pior é o que se está a passar na região do Ártico cujo nome provém do termo grego urso. Definida como o Oceano Ártico e as ilhas e terras de tundra circundantes da Rússia, Alasca, Canadá, Gronelândia e Noruega definidas pelo Círculo Polar, tem 14,5 milhões de Km2 com invernos longos e temperaturas de -20º e verões curtos com +5º. Está num dos centros do mundo como passagem marítima entre vários continentes e tem riquezas imensas no subsolo.

 O mais dramático é que o Ártico é uma região cuja alta importância estratégica aumenta à medida que cresce a catástrofe ambiental. A sua influência na regulação climática global resulta de as calotas de gelo atuarem como termostato natural, refletindo a radiação solar e mitigando o aquecimento global. Entretanto, o derretimento das glaciares está a abrir as rotas de navegação para o comércio mundial e a facilitar o acesso a vastas reservas de petróleo, gás natural e minerais, e a mais terras agrícolas, tornando-se um polo de disputas geopolítico e econômico.

 Até à viragem do milênio era uma zona de paz e cooperação. O Conselho do Ártico foi estabelecido em 1996 entre Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia e Suécia. Estava focado em dirimir de forma diplomática os conflitos de interesses sobre áreas de soberania. A EIA estima que o Ártico contém, além de depósitos minerais valiosos, 13% das reservas mundiais não descobertas de petróleo e cerca de 30% das reservas não descobertas de gás natural, localizadas em áreas em disputa. A China passou participar do Conselho em 2013, conforme o conceito “achinesado” de ser um “Estado próximo do Ártico”.

 Tudo isso mudou em 2025. A gritaria de Donald Trump em relação à Gronelândia e ao Canadá acelerou as pretensões iniciadas em 2009 e expostas no documento Estratégia Ártica dos EUA de 2024 do DoD sobre interesses de segurança e defesa. O presidente Putin tem referido a construção de novos estaleiros mais navios quebra-gelo e mais militares na região. A Suécia e a Finlândia entraram para a NATO em 2024. A Noruega pode vir a entrar para a União Europeia. O Canadá, provocado pelo presidente Trump. e com um primeiro-ministro de extraordinárias capacidades, Mark Carney, está a aumentar a sua presença. A China que dispõe, pelo menos de cinco docas, em portos ao longo da costa da Rússia quer utilizar o Ártico para ampliar a sua influência e peso no comércio mundial.

 Após 2000, alegando a presença da NATO no Ártico, a Rússia começou a remilitarizar a região que se estende por 24.150 km e costa. Em 2019, tinha 14 aeroportos militares, 16 portos de águas profundas e dezenas de bases militares entre as quais se destacam três bases autónomas: Nagurskoye (2020) na perto da Terra de Francisco José; Kotelny, na ilha principal da Nova Sibéria; e Rogachevo, na Novaya Zemlya. A Frota do Norte baseada em Severomorsk ostenta cerca de 120 navios de combate, incluindo os maiores submarinos atómicos do mundo, equipados com armas nucleares e 40 quebra-gelo essenciais para assegurarem em 2024 a passagem de navios com 20 milhões de tonelagem total na Rota do Norte (NSR).

Os guardiões do Urso

Os EUA possuem uma poderosa base aeroespacial na Gronelândia. Tinha o nome de Thule mas recebeu o nome Inuit de Pituffik “onde se amarram os cães”. Abriga e sensores de vigilância de mísseis intercontinentais  e de controlo espacial. As forças de ataque com a 11ª Força Aérea, paraquedistas e forças navais, estão na Base Conjunta Elmendorf–Richardson, em Anchorage, no Alasca. E, pormenor mítico que ninguém esquece sobre estas forças no gelo, é o cenário de onde o genial Stanley Kubrick no filme Dr. Strangelove, faz partir o ataque do bombardeiro B-52 com armas nucleares contra a União Soviética.

 A presença militar do Canadá está no extremo norte da Ilha Ellesmere mas foi anunciada a construção de mais três centros militares no norte, em Iqaluit, Inuvik e Yellowknife, além de patrulhas navais e exercícios militares. O Canadá mantém uma frota de quebra-gelos permanentes com papel crucial na navegação da Passagem do Noroeste. (NWP). Quanto aos países Europeus, as forças militares da Noruega estão em condições de operar dentro do círculo polar ártico que representa 35% do território e 9% da população do país. A Gronelândia, que tem um processo de autonomização em curso, conta com a Dinamarca para a sua defesa.

A militarização crescente na região, à medida que as potências globais competem pelos benefícios estratégicos e económicos associados à tragédia ambiental do derretimento das glaciares, decorreu até agora dentro do quadro do direito internacional. Todos os países do Conselho do Ártico reivindicam vastas extensões com base nas respetivas plataformas continentais, buscando expandir as fronteiras marítimas e controlar áreas ricas em recursos, respeitando a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), a chamada “Constituição dos Oceanos” que vigora desde 1994.

Os guardiões do Urso

Este crescimento econômico no Ártico está ligado ao futuro do transporte marítimo nas Rotas Marítimas NWP e NSR e a projetada rota central. Estes atalhos para a transferência de mercadorias entre Europa e Ásia podem economizar até 50% em distância em comparação com as rotas tradicionais. A viagem entre o Japão e a Europa leva 29 dias via Cabo da Boa Esperança e 22 dias via Canal de Suez. Pelo Oceano Ártico pode levar 10 dias. A distância entre Yokohama e Roterdão é de aproximadamente 20 mil km via Canal de Suez, mas é menos de 9 mil km pela NSR. Com a rota do Suez muito diminuída com a agressão dos Houthis no Yémen, crescem as pressões das companhias marítimas para usar o Ártico. (Os comentários do vice-presidente Vance no recente Signalgate inserem-se neste quadro).

Prever o futuro do Ártico é para adivinhos; mas a escalada na competição é um sinal dos tempos que mostra demasiadas incertezas, emoções nacionais e ambições geopolíticas. Além da variabilidade do comércio global, derretimento do gelo, e pressões para a economia de custos e decisões de governantes, ainda não conhecemos o suficiente o clima do planeta para excluir surpresas horríveis. O aumento do tráfego marítimo tem impactos negativos nos ecossistemas locais e aumenta o risco de acidentes ambientais.

Uma coisa é certa. O Ártico já foi zona de paz e cooperação. Atualmente é zona de competição e os demônios da escalada querem-no transformar em zona de conflito ou guerra. Alguns dos guardiães do urso ja violaram o direito internacional aceite desde 1945, na preservação das soberanias territoriais e na resolução de disputas por meio da diplomacia. Deles não se espera nada de bom.

 NOTA DE RODAPÉ. Seria difícil que Portugal, país de navegadores, não estivesse relacionado com o Ártico. A pedra de Dighton prova como Gaspar Corte-Real alcançou a Terra Nova em 1500 e é quase certo que abordou as costas da Gronelândia. Em 2024 o Arpão S161 distinguiu-se por ter sido o primeiro submarino convencional a navegar debaixo de gelo, tendo o almirante Gouveia e Melo acompanhado parte da expedição que concebera há mais de 10 anos. Graças aos restos de bom senso nacional nunca reivindicámos a Gronelândia, mas vozes anticolonialistas do Canadá já exigiram a retirada do monumento da Pedra de Dighton.

Mendo Henriques

 

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