Às margens serenas do Nabão, entre salgueiros e silêncios de pedra, repousa um gigante adormecido — a antiga Fábrica de Fiação e Tecidos de Tomar. A sua silhueta industrial marca o horizonte como uma cicatriz elegante, recordando-nos que Tomar, cidade de Templários e conventos, também foi berço de fios, tecidos e revoluções produtivas.
Mas para compreender o que ali permanece — e o que ali poderá renascer — é preciso recuar mais do que os manuais escolares ousam contar.
Finda a burocracia com a extinta Real Fábrica das Sedas, é então construída em Tomar a fábrica de Noel Le Maitre, sustentada por capitais emprestados, com a ambição de manter vivo o espírito industrial que Marquês de Pombal havia semeado no reino.
“Pretendia, pois, Noel Le Maître, por sua própria iniciativa, fundar uma nova unidade industrial na Vila de Tomar: uma fábrica de meias de lã e algodão, manufaturadas em tear. Para tal empreendimento, fazia-se-lhe necessário obter da Coroa certos privilégios e isenções.”
Nos primeiros tempos, a unidade ensaia um discreto impulso na produção, procurando afirmar-se no pano ainda rugoso da indústria nacional. Numa carta marcada por zelo e ambição, a direção da fábrica dirige-se ao Senhor Marquês de Pombal, solicitando autorização para a aquisição de mais teares em França, alegando que o consumo interno excedia largamente a oferta, e que a balança comercial do reino pendia perigosamente para o lado das importações.
Contudo, os teares prometidos tardavam em chegar. A produção estagnava. As dívidas acumulavam-se. Noel Le Maitre, preso entre promessas não cumpridas e responsabilidades crescentes, vê a fábrica mergulhar em dificuldades.
Em 1789, a própria Rainha considera o proprietário destituído de meios para suportar os custos da fábrica e para reembolsar o empréstimo da Real Fazenda. É nesse momento de colapso que surgem dois nomes decisivos: Jácome Ratton e Timótheo Verdier, interessados em restabelecer e conservar a unidade industrial.
Fundada em 1818 por Jácome Ratton, um industrial visionário de origem luso-francesa, a Fábrica de Fiação e Tecidos de Tomar foi muito mais do que um conjunto de máquinas a girar. Foi uma escola, uma enfermaria, uma comunidade. Um lugar onde o algodão era transformado em tecido, e o trabalho transformava vidas.
A fábrica foi uma das primeiras unidades industriais modernas em Portugal, aproveitando uma força motriz tão natural quanto poderosa: o próprio rio Nabão, que, por meio de engenhos hidráulicos e engenhocas pioneiras, alimentava as rodas de ferro e os teares em movimento constante.
No coração deste sistema industrial estava (e está) o magnífico Açude de Pedra, uma obra-prima de engenharia hidráulica que ainda hoje atravessa o rio Nabão com firmeza e elegância. Este açude desviava a água para os canais de força da fábrica, permitindo-lhe operar sem carvão nem vapor — apenas com a inteligência da natureza e a vontade humana.
O som das águas batendo nas comportas misturava-se com o compasso das máquinas, num ritmo que embalava gerações de trabalhadores e fazia de Tomar uma cidade de vanguarda.
Com o passar das décadas e a crise da indústria têxtil, a fábrica foi perdendo o seu fôlego. As máquinas calaram-se. Os operários foram-se embora. E os edifícios, com as suas janelas altas e paredes espessas, mergulharam num silêncio melancólico.
Hoje, o complexo está parcialmente devoluto. As estruturas de pedra e tijolo resistem estoicamente ao tempo, como se esperassem por alguém que ainda as entenda.
E se aquele espaço industrial não estivesse no fim, mas apenas no intervalo?
E se a Fábrica de Fiação fosse reanimada como uma “Fábrica Viva” — um centro de indústrias criativas, turismo cultural, investigação tecnológica e economia verde?
Imagine: um museu interativo da história industrial de Tomar, com oficinas têxteis vivas e visitas sensoriais; uma incubadora de design e inovação sustentável, em parceria com o Instituto Politécnico de Tomar; um mercado criativo de produtos locais, onde o antigo algodão dá lugar ao talento contemporâneo.
Tudo isto alimentado por uma nova energia: solar nos telhados, inteligência nas ideias e na água — sempre a água — vinda do Nabão.
A Fábrica de Fiação de Tomar não é apenas um esqueleto do passado. É um palco à espera de novo espetáculo. É património com alma, história com esperança, pedra com pulso. E o seu renascimento pode ser o ponto de partida para uma nova era de desenvolvimento, criatividade e orgulho tomarense.
Porque algumas fábricas nunca deviam ser fechadas. Apenas reinventadas.
Arnaldo Rivotti
Foto: Threeohsix