A propósito dos restauros da Charola do Convento de Cristo no fim do século XX

Por: Mário Beja Santos

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O então IPPAR editou em 2000 um pequeno estudo sobre o ponto de situação do restauro da abóbada da Charola, concretamente o período em 1995 e 1999, trabalhos de restauro da pintura moral da abóbada que estiveram a cargo da Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra, de colaboração com o Instituto José Figueiredo.

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Só vejo pertinência em ajustarmos estas sucessivas fases que se iniciaram em 1988 e que têm dado origem a várias obras, como aqui se refere. Nesta publicação de 2020, o IPPAR dizia que passara a ser possível visitar a Charola com a pintura mural da abóbada restaurada, com os raríssimos estuques consolidados e com outros restauros em curso. E dizia-se com manifesto orgulho: “A pintura mural da abóbada posta entretanto a descoberto, restaurada e reintegrada, oferece uma visão original e enriquecida do conjunto, acrescentando-lhe sentido iconográfico que se encontrava perdido por detrás dos repintes sucessivos”. E logo se informava que estes trabalhos de restauro iriam continuar, impunha-se uma nova perspetiva de intervenção e ao tempo decorriam trabalhos de restauro no Claustro dos Corvos, nas Casas dos Serviçais do Conde e das infraestruturas de águas e esgotos, bem como se procedia ao estudo das patologias da pedra da Charola e da Sacristia Nova. Anunciava-se um novo programa de intervenção que se estenderia nos próximos anos.

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Os autores deste pequeno trabalho referem explicitamente que a Charola é a charneira do desenvolvimento espacial do Convento, “dela tendo partido ou a ela, de algum modo, tendo regressado todas as reformas e obras entre os séculos XV e XVIII. Por esse motivo, a Igreja do Convento de Cristo continua a ser ponto de partida incontornável para a compreensão do monumento”. E o então diretor do Convento de Cristo, Pedro Redol, lança uma advertência: “Uma intervenção de conservação e restauro é sempre realizada com o objetivo de remediar as patologias mais graves do objeto tratado. No caso da Charola, a incomensurável extensão de superfícies de pintura mural, de estuque e de madeira dourada e policromada autorizou as medidas mais importantes, ainda que menos aparentes: a limpeza e consolidação dos materiais conservados, bem como o diagnóstico e a documentação circunstanciada do estado de conservação de todas as superfícies.

A partir de agora é possível intervir localizadamente, respeitando prioridades e concedendo o tempo necessário aos tratamentos”. E o então responsável por este Património da Humanidade advogava a mudança de localização da área de receção.

A equipa de restauro apresenta em síntese um relatório dos trabalhos, justificando a natureza dos materiais aplicados e o porquê dos critérios para a reintegração cromática. Na continuação, temos uma nova síntese, desta feita da responsabilidade da Divisão de Conservação e Restauro do IPPAR, fazendo a cronologia dos trabalhos de restauro, lembrando, por exemplo, foi necessário procedendo ao tratamento das mísulas que sustentam as dezoito esculturas e dos baldaquinos que as encimam.

É neste contexto que ganha realce o trabalho de Paulo Pereira sobre a leitura iconológica da Charola. Diz ele que o edifício terá substituído uma pequena capela ou edícula fundada em 1160 pelo grão-mestre D. Gualdim Pais. Foi alvo de vários períodos de construção e também sujeito a um descarnamento e reconstrução da sua base. É inegável o referente mítico. Ter-se-á pretendido reproduzir a imagem do Santo Sepulcro de Jerusalém ou Mesquita de Omar, a Charola constituía uma evocação de Jerusalém, tanto mais necessária quanto era em Jerusalém que a sede da Ordem do Templo tinha assento.

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As modificações manuelinas tiveram em conta este dado. “Munidos por uma densa e complexa cultura teológica, retórica e mnemónica, os programadores do tempo de D. Manuel reorientaram a Charola e decoraram-na tendo como princípio básico o que ela desde sempre representara aos olhos dos crentes”. E o historiador refere as obras que decorreram entre 1510 e 1513: a articulação da velha Charola com o Coro, situado a poente; a cobertura da Nave; o acabamento do Coro e da sua relação com a Nave da Igreja; e a construção do novo acesso monumental, que fazia falta para exprimir a grandeza da congregação e do seu grandioso mecenas.

Tudo isto foi executado por Castilho e no entretanto o interior da Charola fora enriquecido através de um programa de mobilização litúrgica e de decoração global. Nesta nova conceção, a edificação do corpo da Nave e Coro veio colocar a Charola na posição de uma capela-mor devidamente orientada. “A conotação salomónica da Charola e da Igreja do Convento de Cristo parece ter sido o fio condutor que dos tempos românicos até à Reforma Joanina da Ordem, passando pelo período Filipino, suscitou paralelismos entre Tomar e a Jerusalém real ou visionária das Escrituras”. E de novo o historiador lança explicações sobre a ideologia manuelina através da leitura salomónica que estas alterações introduziram.

É um extenso e arrojado conjunto de considerações sobre o sentido das intervenções manuelinas, justifica aquilo que veio constituir um efeito de enriquecimento decorativo, como descreve: “Para além de nervuras, modenaturas e molduras, encontramos na pintura mural da abóbada da Charola a representação perspetivada de mísulas e capitéis, além de cordas entrelaçadas no seio daqueles enquadramentos arquitetónicos.

Entre esses elementos esgueiram-se, de quando em vez, temas figurativos dos quais se destaca a representação de pombas, morcegos ou macacos, no que parece ser uma psicomaquia, ou seja, a representação da luta entre o bem (a pomba) e o mal (os animais fantásticos, híbridos ou conotados com o baixo mundo)”. E dá conta do resultado: “Se é notável o cruzamento desta arquitetura fingida com as cordas manuelinas é ainda mais impressionante, em dois dos panos da abóbada, um entrelaçamento e mistura de representações e molduras, com troncos de árvores secas e raízes. Nestes tramos, o fundo não é vermelho, mas sim verde-escuro.

Os troncos atravessam as molduras, literalmente perfurando-as, constituindo-se como uma espécie de segunda arquitetura sob a arquitetura representada. Este facto parece confirmar a nossa suspeita de que a arquitetura do período manuelino pretendia solidarizar-se com a Natureza”. E finaliza: “A Charola e o respetivo programa iconográfico, na sua relação com a arquitetura, torna-se portadora de um complexo mas fascinante sinal de redenção e de resgate salvífico”.

Recorda-se ao leitor que há mais publicações sobre restauros de que a seu tempo aqui se fará divulgação.

Mário Beja Santos

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