1984, o romance distópico que nos alerta para o terror da vigilância totalitária

Por Mário Beja Santos

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1984Publicado em 1949, o romance de George Orwell era fruto daquele tempo da ascensão da Guerra Fria, da própria experiência do autor que conhecera em tempo real o confronto entre totalitarismos, foi alvo das mais contundentes controvérsias, e dado o génio da arquitetura da escrita, mantém uma aterradora atualidade quando pensamos no populismo, nos regimes tirânicos que convivem com as democracias, nas redes sociais onde não é pura especulação imaginar-se múltiplas formas de controlo que, em última instância, possam levar a uma vigilância permanente e ao condicionamento das livres opções.

Caído no domínio público, 1984 está a ser objeto de várias reedições, temos agora em conta a de Livros do Brasil/Porto Editora, de janeiro deste ano. E prepare-se o leitor para conviver com Winston Smith, um funcionário do Ministério da Verdade que passa o dia a corrigir documentos, forma de reescrever a História e de apagar o passado que possa ser incómodo ou questionável ao Grande Irmão e ao Partido que em Londres domina a política do superestado da Oceânia. A vigilância das nossas vidas vai começar.

Para se entender todo este universo alegórico, onde preponderam princípios como a nova fala, a linguagem oral e escrita daquela sociedade totalitária. O Partido esperava que quando a nova fala fosse finalmente adotada em pleno desaparecesse qualquer pensamento herético, e daí os permanentes estudos académicos sobre o vocabulário apropriado, a construção gramatical, como o autor observa: “Quando a velha fala tivesse sido suplantada de uma vez por todas, ter-se-ia cortado com a derradeira ligação ao passado.

A História já tinha sido reescrita, mas sobreviviam fragmentos da literatura do passado aqui e ali, imperfeitamente censurados e enquanto fosse possível manter o conhecimento da velha fala, seriam passíveis de ser lidos. No futuro, tais fragmentos, mesmo que calhasse sobreviverem, seriam ininteligíveis e impossíveis de traduzir”.

Seremos inseridos no quotidiano de Winston Smith, iremos saber o que é a semana do ódio, a sessão diária de dois minutos de ódio, irá aparecer a cara de Emmanuel Goldstein, o inimigo do povo, sessão mais histérica não pode existir, haverá gritos incontroláveis de fúria, aparecerá depois o Grande Irmão e destacar-se-ão os três slogans do Partido: guerra é paz; liberdade é escravidão; ignorância é força. Winston, apercebemo-nos imediatamente, é um crescente opositor daquele tipo de sociedade, descrito como lúgubre, as consciências manipuladas, a individualidade espezinhada, as crianças a denunciar pais alegadamente contestatários. Em dissidência, Winston já está a escrever um diário onde é claro o repúdio do Grande Irmão. Tem lembranças da infância, quando os pais inopinadamente desapareceram, na Oceânia é frequente volatizarem-se pessoas, logo esquecidas.

Em 1984 a Oceânia estava em guerra com a Eurásia e aliada à Estásia, o mundo dividia-se em três blocos, uma Oceânia que incluía as Américas, as Ilhas Britânicas e uma parte de África, a Eurásia que se estendia da Europa para a Rússia, e a Estásia que incluía todo o resto. Há apenas quatro anos a Oceânia tinha estado em guerra com a Estásia e aliada à Eurásia. “Mas isso era apenas um pouco do conhecimento furtivo que calhava possuir porque a sua memória não estava satisfatoriamente controlada. Oficialmente, a mudança de parceiros nunca tinha acontecido. A Oceânia estava em guerra com a Eurásia: portanto a Oceânia tinha estado sempre em guerra com a Eurásia.

O inimigo do momento representava sempre a maldade absoluta, e daí se depreendia que qualquer acordo passado ou futuro seria impossível. O Partido dissera que a Oceânia nunca tinha estado aliada à Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que a Oceânia tinha estado sempre aliada à Eurásia há apenas quatro anos. Mas onde é que esse conhecimento existia? Apenas na sua perceção, que, em qualquer caso, teria de ser aniquilada em breve. E se todos os outros aceitassem a mentira que o Partido impunha – se todos os registos contassem a mesma história – então a mentira transitaria para a História e tornar-se-ia verdade”. Muito do mundo elaborado pelo Partido entra em nossas casas e nos escritórios através do telecrã, um meio de vigilância da Polícia do Pensamento.

O Ministério da Verdade é o Ministério da Mentira; o Ministério do Amor é o Ministério do Ódio; o Ministério da Paz é o Ministério da Guerra; o Ministério da Abundância é o Ministério da Fome. Sempre que há necessidade, falsificam-se as estatísticas, os documentos do passado desaparecem, tudo é reelaborado, todo o passado se reconstrói – nos jornais, filmes, manuais, programas de telecrã, peças de teatro e livros de ficção, até a música.

Uma mulher chamada Júlia apaixona-se por Winston, conhecerão um grande amor, algo de inaceitável no Partido, sentimentos, sexualidade, individualidade foram banidos, constituem crime. “O objetivo do Partido não era apenas prevenir que homens e mulheres criassem lealdades que poderia não ser capaz de controlar. O seu objetivo verdadeiro e não declarado era retirar todo o prazer do ato sexual. Não era tanto o amor, mas sim o erotismo que era o inimigo, tanto dentro do casamento como fora dele.

Todos os casamentos entre membros do Partido tinham de ser aprovados por uma comissão nomeada para o efeito e – ainda que tal princípio nunca fosse claramente declarado – a autorização era sempre negada se os membros do casal em causa dessa ideia estarem fisicamente atraídos um pelo outro. O único propósito reconhecido dos casamentos era o de gerar crianças para servir o Partido. As relações sexuais eram vistas como um procedimento menor, ligeiramente nojento, como fazer um clister”.

Há o Partido Interno e há o Partido Externo, tudo numa percentagem de 15%, e temos os proles, o proletariado, 85% da população da Oceânia. “O Partido nunca poderia ser derrubado de dentro. Os seus inimigos, se é que tinha sequer inimigos, não tinham forma de se juntar nem sequer de se identificarem uns aos outros. Mesmo que existisse a lendária Irmandade, como poderia até existir, era inconcebível que os seus membros se pudessem reunir em números superiores a dois ou três de cada vez. Revolução significava um olhar, uma inflexão da voz, no máximo, uma palavra sussurrada de vez em quando. Mas os proles, se pudessem de alguma forma tomar consciência da sua própria força, não teriam necessidade de conspirar”. O que era literalmente impossível, a máquina da Polícia do Pensamento suprimia qualquer veleidade.

É dentro desta trama que iremos entrar no mundo de horrores, de aniquilamento da personalidade, em que o embuste, a completa trapaça destroem qualquer forma de vida sentimental até se chegar a uma forma de degradação total, Winston Smith, depois de um laborioso processo de lavagem ao cérebro, acabará por amar o Grande Irmão.

1984 é uma obra avassaladora, o tempo não a enrugou, pelo contrário, nunca as ameaças da sociedade de vigilância foram tão poderosas e tendencialmente eficientes, a ameaça populista continua de pé, tal como o desprezo pelos proletários neste universo onde o Partido pode manipular a comunicação, manter discrição sobre os poderosos da finança e prometer vezes sem fim reduzir as desigualdades e travar as mudanças climáticas. O mais apaixonante romance distópico de todos os tempos chegou em boa hora, é urgente refletir para que não nos cerceiem as liberdades. Além disso, a escrita de George Orwell é insuperável, digna de um grande clássico contemporâneo.

Mário Beja Santos

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