Cristo com carabina ao ombro, por Ryszard Kapuściński

Por: Mário Beja Santos

0 886
Widget dentro do artigo  
 
   
Advertisements
Advertisements

cristoReconhecido por vozes autorizadas como um dos grandes mestres do jornalismo moderno, repórter empolgante e dotado de um poder descritivo fractal que agarra o leitor do princípio ao fim, em Cristo com Carabina ao Ombro, Livros do Brasil, 2021, de Ryszard Kapuściński pode ser agora apreciado de um trabalho que teve a sua primeira edição polaca em 1975 e que nos leva a três cenários distintos, marcantes na época e que desgraçadamente continuam atuais: o conflito israelo-palestiniano, as ditaduras da América Latina e a luta de libertação em Moçambique.

O repórter viaja acompanhado por três feddayin (combatentes da liberdade), muitos jovens, trajam fardas de cotim e empunham metralhadoras, chegam a Rashidyia, esta cheira a laranjas e a sangue. “Um dos explosivos atingiu um camião que transportava laranjas; assim, líquidos dourados e aromáticos jorram pela rua principal. Perto, ao pé de um casebre, está sentado um velho árabe que parece petrificado no seu silêncio. Daquilo que ainda ontem era a sua casa, não restou mais do que o chão e um pedaço do muro.

Da família não sobreviveu ninguém”. Rashidyia é um dos campos palestinos no Líbano. Percorrem-se ruínas e o jornalista interroga a luta destes palestinos, é um conflito com muita história, arredondando números, em 1930, escreve o autor, o governo britânico conclui que a Palestina era demasiado pequena e que, consequentemente, não podia acolher mais judeus porque não havia terras livres. Mas estamos a falar de 200 mil judeus, e nos anos 1970 eram quase 3 milhões. Há naturalmente um problema de espaço e as vitórias militares sobre os Árabes geraram a ambição de um grande império.

A opinião pública mundial desconhece que a imigração judaica para a Palestina não se realizou só à custa dos Palestinos, mas também à custa dos judeus da Palestina. “Os judeus locais lembravam-se de que outrora a Palestina era uma terra próspera onde conviviam Árabes, judeus e cristãos e onde não passava pela cabeça de ninguém disparar nas costas do vizinho. Outrora, cada comunidade guardava os seus templos e havia espaço para todos os deuses. Um milhão de palestinos teve de abandonar a sua Pátria”.

E descrevem-se os campos de refugiados e a vontade indómita do retorno à sua terra. Viaja-se pela História de um conflito, lembra-se o exército clandestino judaico, o Haganah e a sua organização terrorista Palmach e uma outra mais terrorista, a Irgun, geraram matanças na população árabe e não pouparam os britânicos, era necessário expulsar os Palestinos. E vem uma observação que tem premente atualidade: “Se o mundo não interferir, nenhuma das partes vai terminar esta guerra. Há demasiado ódio, demasiada morte, demasiada desgraça, e a memória está demasiado viva. Trata-se de um pequeno pedaço de terra, difícil de encontrar no mapa-mundo”. E viaja-se pela complexidade das alianças entre árabes, a Jordânia fora cruel com os Palestinos, sonharam incluir a Palestina dentro do seu reino.

A reportagem continua por todo este calvário, fala-se da Batalha dos Montes Golã e questiona-se porque é que os árabes perderam a guerra em 1967, procura-se uma explicação: “Em Israel todos participam na guerra, nos países árabes é só o Exército. Em Israel, quando começar a guerra, todos vão para a frente de combate e a guerra civil para. Na Síria, ao contrário, muitos ficaram a saber da guerra de 1967 só quando acabou, ainda que a Síria tenha perdido uma zona tão estrategicamente importante como os Montes Golã.

A Síria estava a perder os Montes Golã, e no mesmo dia, à mesma hora, a vinte quilómetros de distância, os cafés em Damasco estavam cheios de clientes, havendo gente a deambular, apenas preocupada em encontrar uma mesa livre”. Um repórter que nos faz compreender a germinação do imperialismo israelita que ninguém parece estar em condições de travar.

Já estamos na América Latina e o repórter justifica o título da sua obra: “Pouco depois da morte de Che Guevara, o pintor revolucionário argentino Carlos Alonso pintou um quadro que imediatamente se tornou famoso em toda a América Latina: a figura de um Cristo de carabina ao ombro. O quadro de Alonso converteu-se desde então num símbolo artístico do guerrilheiro, do homem que combate a violência e a arbitrariedade na sua luta por um mundo diferente, justo e bom para todos os seres humanos”.

É uma reportagem que pode ser vista como uma parada de horrores, primeiro na Bolívia, com a sua instabilidade, prisões, execuções, golpes de Estado, os militares a derrubarem-se uns aos outros, uma degenerescência que lembra o fim do Império Romano. Passamos para outra atmosfera ditatorial, a ilha de S. Domingos, dois ditadores e dois monstros onde 90% da população vive na mais profunda miséria e ignorância. Depois El Salvador e a seguir os crimes abomináveis da Guatemala onde os EUA sempre tiveram o descaro de perseguir quem contraria o império bananeiro da United Fruit. Se ainda houvesse dúvidas sobre a abjeta interferência norte-americana nos assuntos internos da América Latina é só estudar o que se passa na Guatemala, ainda recentemente o romancista Vargas Llosa lhe dedicou um pungente romance ficcional Tempos Duros.

Uma pequena água-forte do autor: “A Guatemala é um país governado por uma camarilha de coronéis, já que durante a revolução anularam o grau de general. No Exército, há um coronel por trinta soldados. A Embaixadas dos Estados Unidos ocupa o lugar supremo do poder, depois vem o Conselho de Coronéis, e o governo ocupa o terceiro lugar.

Qualquer coronel gostava de ser presidente, devido ao prestígio e ao salário alto. O ordenado anual do Presidente da Guatemala é de um milhão e 94 mil dólares, sem contar com outras regalias, mais ou menos oficiais, e um enorme subsídio de representação (no mesmo país, os rendimentos de um camponês rondam entre os 50 e 80 dólares anuais”. E observa o que espera um jovem revolucionário neste canto do mundo: “Uma pessoa jovem, na América Latina, cresce rodeada de um mundo corrupto. É o mundo da política exercida pelo dinheiro e para o dinheiro, um mundo de demagogia desenfreada, um mundo de assassínios e de terror policial, um mundo da plutocracia prolixa e despiedada, de uma burguesia ávida de tudo, de exploradores cínicos, novos ricos depravados e vazios. Um jovem revolucionário rejeita tudo isto, pretende destruir esse mundo, mas antes de o conseguir quer contrapor-lhe um mundo diferente, limpo e honesto, e arrisca a sua própria vida”.

Estamos agora em Dar es Salaam, 1962, o repórter encontra-se com Joaquim Chissano e Eduardo Mondlane, fala-se da independência de Moçambique, das diferentes fações ligadas à libertação, faz-se o historial do início da guerra e das batalhas da FRELIMO. E assim se despede, Moçambique já é independente: “Revi as fotografias de Lourenço Marques. Numa delas, dois inimigos de ontem, um soldado português e um guerrilheiro da FRELIMO, patrulham juntos a cidade. Examino os dois rapazes e vejo que o soldado tem botas e o guerrilheiro também já usa botas. E, de repente, pensei que há no mundo coisas grandes, e que é magnífico que, depois de anos de se andar descalço, chega afinal o dia em que se já se pode calçar sapatos e caminhar pela terra sem medo de deixar rasto”.

De leitura obrigatória.

Mário Beja Santos

Todas as quintas-feiras, receba uma seleção das nossas notícias no seu e-mail. Inscreva-se na nossa newsletter, é gratuita!
Pode cancelar a sua subscrição a qualquer momento

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado.