O Holocausto na mais brilhante e detalhada investigação da Historiografia Portuguesa

Por: Mário Beja Santos

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Mário Beja Santos

Quilómetros inumeráveis têm sido escritos sobre o Holocausto ou Shoá, quem tomou as decisões, quem as executou, quem lhes fingiu indiferença, como se processou a calendarização desta infâmia; e no que toca a Portugal, como e quando o governo de Salazar foi informado do genocídio nazi, que procedimentos adotou, quais os expedientes para salvar judeus, o que sabia a opinião pública sobre estes assassinatos em massa? Estas são algumas das questões a que a historiadora Irene Flunser Pimentel se abalança num trabalho seguramente de referência, e seguramente o mais completo e rigoroso da nossa historiografia contemporânea: Holocausto, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2020.

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Muito bem esquematizado, dá-nos uma primeira parte em que se procura aclarar o significado de Holocausto, referindo os judeus da Europa, o racismo antissemita nazi e as forças de execução da Shoá; segue-se um quadro onde se procura fazer o cruzamento da ideologia nazi e do seu antissemitismo, é indiscutível que o papel determinante coube a Adolfo Hitler, mas a doutrina depois designada por Solução Final conheceu cambiantes, antes e durante as sucessivas invasões perpetradas pelas Forças Armadas alemãs em territórios com vasta demografia judaica, e daí a autora, na esteira da moderna historiografia mundial hierarquizar três etapas da trajetória que levou à Shoá, desde a ascensão dos nazis ao poder, logo em janeiro de 1933 até ao desencadear fulminante da invasão da União Soviética, em junho de 1941, havendo depois de considerar uma quarta etapa que se estende até ao verão de 1944 que teve o seu ponto culminante no assassínio em massa dos judeus húngaros. Posto este contexto, a historiadora revela-nos a natureza dos campos de concentração e de que modo os crimes genocidas iam sendo conhecido pelos Aliados e como se acordou num tribunal internacional para julgar os crimes de guerra.

Posta esta primeira parte, entramos na realidade portuguesa, a ideologia do Estado Novo e como ele se cruzava com o nazi-fascismo. De há muito que a historiografia portuguesa revelou o nosso antissemitismo de pacotilha, como mesmo a intelectualidade por ele seduzida era quase irrelevante e constituía um biscate da propaganda nazi em Portugal; o regime de Salazar procurou instituir inicialmente uma política externa que não afrontasse Hitler, havia o medo pacóvio de que aqueles judeus fugitivos entrassem no mercado de trabalho ou trouxessem perturbação ideológica e daí a adoção de restrições à permanência de judeus em Portugal; com o declínio do ímpeto bélico nazi e a subida de influência dos EUA, o regime de Salazar deixou de dar importância aos ultimatos alemães, cuidou de salvar os judeus em vários pontos da Europa; e vamos igualmente conhecendo onde foram fixados estes judeus em Portugal, como funcionavam as organizações internacionais de auxílio, e igualmente, devido ao final da guerra temos a certa altura uma mescla de fugitivos nazis e refugiados antinazis em Portugal.

Igualmente importante é o epílogo em que a autora questiona como e quando se soube em Portugal da Shoá e os julgamentos havidos dos criminosos nazis.

Chama-se a atenção do leitor para a importância da introdução, que catapulta o interesse do leigo para esta maratona de leitura com mais de 550 páginas:

“Por várias razões, o tema do Holocausto em Portugal ficou submerso num limbo, para onde Salazar o conseguiu remeter, com a sua política de neutralidade durante a II Guerra Mundial. Depois, sobrevivendo o seu regime ditatorial no pós-guerra, conseguiu eliminar o tema da História e da memória dos portugueses, que não se sentiram envolvidos, quer na guerra europeia, quer no trágico acontecimento de gigantescas proporções da Shoá. Com o fim do regime ditatorial, houve, tanto entre os portugueses como no campo historiográfico português, muitas outras prioridades.

Estava tudo por fazer, desde a caraterização do regime ditatorial derrubado ao estudo das suas instituições, passando pelo comportamento dos ditadores Salazar e Caetano durante o período entre 1932 e 1974. A atitude política de Portugal durante a II Guerra Mundial era apenas um pequeno episódio da história do Estado Novo, e temas como a presença no país dos refugiados e o papel em Portugal de espiões dos dois lados beligerantes, bem como a atitude de Salazar durante a Shoá, permaneceram escondidos até ao final dos anos 80 do século XX (…) Hoje, vinte anos passados do início do século XXI, já existe em Portugal muita literatura historiográfica sobre o Portugal de Salazar e a II Guerra Mundial, os refugiados que passaram pelo país nos anos 30 e 40 do século XX, a diplomacia portuguesa e o relacionamento económico e político durante o Holocausto. O futuro da investigação histórica sobre o tema passa por abordar temas específicos relativamente ao papel dos portugueses no Holocausto, mas também por continuar a proceder a um trabalho de análise comparativa, de caraterização e de contextualização no âmbito de um movimento de ditaduras de vários tipos, à escala europeia. É certo que continua a faltar uma internacionalização da historiografia portuguesa que passa pela tradução, pelo menos para a língua inglesa, para que Portugal esteja definitivamente inserido no campo da história da Shoá, europeia e mundial”.

Ainda nesta introdução, a historiadora refere as lacunas, as incompreensões sobre casos específicos de categorias de pessoas. Com efeito, a “Solução Final da Questão Judaica” foi muito mais longe do que o extermínio racial, operou mortandade em eslavos e ciganos, deficientes físicos e psíquicos, homossexuais, incidentalmente levou ao trabalho escravo, convém não esquecer que os primeiros muito milhares de mortes em Auschwitz, e mortos barbaramente, foram prisioneiros soviéticos. E a autora faz a sua declaração de interesses:

“Escrevi este livro para que sirva de uma espécie de manual, em que se possam encontrar respostas a diversas perguntas e dúvidas, desfazer confusões, ajudar a derrubar ideias feitas e lugares-comuns contendo falsidades; em suma, contribuir para um maior conhecimento do tema do Holocausto. Por isso, não só se procurará aqui desentranhar as causas complexas da Shoá como derrubar ideias de que tal acontecimento se deveu a um grupo de dirigentes e loucos em torno de Hitler. Se a Shoá se reporta ao genocídio, que se pretendeu total, dos judeus da Europa, através do qual cerca de seis milhões foram assassinados, os nazis perseguiram e assassinaram outras minorias, como aconteceu com cerca de meio milhão de ciganos de etnia rom e sinti e 70 mil deficientes físicos e/ou psíquicos. Lembre-se ainda o assassínio de 3 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, para não falar dos 700 mil sérvios assassinados às mãos dos croatas e das elites e católicos polacos às mãos dos nazis. Muitos outros seres humanos, não tendo sido objeto de genocídio e de assassínio em massa, foram também perseguidos até à morte pelos nazis e pelos seus cúmplices, como aconteceu com cerca de 80 mil prisioneiros políticos alemães, cerca de 10 mil homossexuais e centenas de testemunhas de Jeová”.

Uma investigação de arromba que coroa um percurso universitário e uma carreira de investigação ímpares. O Círculo de Leitores e a Temas e Debates por mais este triunfo a favor da cultura portuguesa, em que continuam na vanguarda, nenhum editor se lhes iguala.

Mário Beja Santos

 

 

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