A obra “Thomaridade” de Carlos Carvalheiro, apresentada em formato teatral pelo grupo Fatias de Cá, é uma construção ficcional profundamente enraizada em factos, contextos e figuras históricas — um exercício de “ficção histórica” com rigor dramatúrgico e liberdade criativa. Do ponto de vista histórico, o texto oferece uma leitura simultaneamente crítica, simbólica e utópica da fundação de Portugal e do papel dos Templários na construção de uma identidade lusitana com vocação universal.
Thomaridade parte de momentos-chave da história medieval portuguesa (europeia e mediterrânica) e reinventa-os à luz de uma proposta simbólica: o nascimento de Portugal como projeto espiritual e geopolítico de integração entre religiões e culturas. Esta perspetiva tem ecos sebastianistas, e do “Quinto Império”, misturando:
• Fontes históricas reais (como a fundação da Ordem do Templo em 1118, a doação de Tomar, as intrigas papais e régias);
• Personagens reais (Henrique de Borgonha, Gualdim Pais, Afonso Henriques, D. Dinis, D. Isabel, Jacques de Molay, Saladino, entre outros);
• Elementos lendários (tesouro templário escondido, mapas secretos – portulanos –, as tribos perdidas de Israel, a Távola Redonda, alquimia, etc.).
Essa fusão cria uma “história paralela” onde os bastidores da política e da fé são vistos como teatro de forças espirituais, interesses materiais e ideais utópicos.
Historicamente, Tomar foi, de facto, a sede da Ordem dos Templários em Portugal e, mais tarde, da Ordem de Cristo — herdeira direta da sua missão. No texto, Tomar é elevada a um “epicentro iniciático” e geoespiritual do futuro, onde se cruzam:
• Ciência náutica e cosmografia (ver as aulas de cartografia e cosmografia);
• Alquimia e simbolismo iniciático;
• Ética cavaleiresca e a construção de um novo império — não de dominação, mas de sabedoria e união (ecoando as ideias de Vieira e Agostinho da Silva).
O texto traça uma crítica contundente à Igreja de Roma, expondo:
• O papel persecutório contra judeus, cátaros, mulheres e qualquer conhecimento “oculto”;
• O uso político da heresia como justificação para a aniquilação da Ordem dos Templários;
• A relação de poder entre papado e monarquia, e a manipulação do sagrado pelo interesse político.
Essa crítica é fundamentada em eventos históricos, como a perseguição aos Templários por Filipe o Belo e a Inquisição, mas é dramatizada com intensidade poética.
A peça ultrapassa o relato histórico e propõe uma reflexão sobre:
• A necessidade de reconciliação entre as grandes religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islão);
• A possibilidade de um futuro pacífico e universal, a partir de Portugal, como porto seguro e visionário;
• O papel da arte, da ciência e do conhecimento oculto como ferramentas de libertação humana.
Esta proposta está alinhada com correntes como o messianismo português, o pensamento esotérico renascentista e os projetos culturais e civilizacionais da Escola de Sagres.
Thomaridade é uma criação artística que recria e reencanta a história de Portugal, propondo um olhar simbólico e alternativo sobre os momentos fundacionais da sua identidade. Historicamente, respeita o contexto e os dados reais, mas escolhe reinterpretá-los à luz de uma visão crítica e visionária, propondo Portugal como berço de uma nova era espiritual e universal. Um teatro de ideias que convida à ação poética e à reflexão histórica.
Alexandra Azevedo de Carvalho
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