Crónica da Europa: A sexta-feira-santa dos Capitães de Abril

Por: Mendo Henriques

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Entre 1971 e 1973, Salgueiro Maia comandou a Companhia de Cavalaria 3420, na Guiné e com os seus 28 anos assinava “O Progressista-Mor” no seu jornal de caserna “Os Progressistas”. Como escreve no n.º 26: “Vem isto a propósito da palavra cidadão; é minha intenção ao escrever estas palavras, contribuir para que ela seja vivida na plenitude, isto é, que Cada um de nós seja um verdadeiro cidadão no cumprimento dos deveres e na vivência dos direitos”.

Foi preciso ser de esquerda para fazer a revolução do 25 de Abril, mas não era preciso ser de esquerda para contestar a colonização. Quando a Força Aérea Portuguesa bombardeou os algodoeiros revoltosos da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, o brigadeiro Pinto Resende descreveu o sentimento dos pilotos: “Os concessionários que são os ricos só têm benefícios, enquanto os agricultores que são os pobres, os desgraçados burros de carga dos pretos, são quem arrasta com todos os prejuízos. Não estamos dispostos a morrer para servir ganâncias e egoísmos de senhores que têm responsabilidades no regime político em que vivemos” (Fernando Valença in As Forças Armadas e as Crises Nacionais, 1977).

Os Capitães de Abril entenderam que o preço da nossa liberdade é uma espécie de morte, porque todo aquele que morreu foi libertado do pecado na fórmula de S. Paulo (Rom. 6:7). Os Capitães iniciaram em Portugal a era pós-moderna, em que os impérios deixam de servir a humanidade e abriram as portas à democracia. Não era fácil a oficiais disciplinados levar a cabo um golpe de estado contra as autoridades e liquidar um império de vários séculos e pelo qual tinham jurado combater. Foi essa a sua sexta feira santa.

Sabemos como no início do Movimento dos Capitães se misturaram exigências corporativistas com desígnios de libertação nacional. Diz-nos Morais da Silva em “Os Capitães do Quadro Permanente na Guerra de África”; de 1961 a 1974, partiram de Lisboa mais de duas mil companhias de combate, comandadas por 2370 capitães, sendo 1370 do QP e mais de 1000 do QC. Mais de 25% dos capitães e majores fizeram duas ou mais comissões.
O número de capitães do QP no teatro de operações baixou de 374, em 1970, para 119, em 1974.
No mesmo período, os do QC cresceram de 248 para 431. A crescente falta de oficiais do QP deve-se à falência da Academia Militar que deixou de interessar as classes altas, mais interessadas em cursos que dessem acesso a “lugares de prestígio” em empresas. Os finalistas da AM baixaram de 146 cadetes, em 1966/67, para 40, em 1973.

Em 1973, a menos de um ano do 25 de Abril, a AM tinha 72 alunos e apresentava 423 vagas! As chamadas “élites portuguesas” queriam continuar a desfrutar dos benefícios do império sem ter de o defender de armas na mão.
Os impérios europeus foram uma extensão da soberania dos Estados-nação para além das suas fronteiras. A dada altura, quase todos os territórios do mundo poderiam ser codificados em cores: cor-de-rosa para os Britânicos, azul para Franceses, verde para os Portugueses, e por aí afora. Na gestão dos impérios, os governantes só tinham de se preocupar com o 1% ou 2% mais ricos. A chave para o sucesso era um compromisso entre os governantes e as elites para partilhar os “excedentes” de população: as elites locais “geriam” 98% da população com sistemas locais de clientelismo, coerção e violência. Construíram um Leviatã moderno que reproduzia o domínio social e impôs fronteiras para vigiar a sua identidade e excluir outras. Durante 4 séculos as fronteiras modernas do colonialismo europeu asseguraram a expansão económica, os limites territoriais e o centro de poder a partir do qual se comandava os territórios ultra metropolitanos

Os Capitães de Abril alcançaram em 1974 o que a Inglaterra realizou até 1960 e a França em 1962.

A Guerra do Quénia e da Malásia não estava militarmente perdida para os britânicos, nem a Guerra da Argélia para Franceses, nem a Guerra de África para os Portugueses. O que estava a perder-se era a comunidade de origem, destroçada pela violência das divisões sociais, pela ausência de justiça. As centenas de capitães do 25 de Abril que ao longo de um ano ganharam consciência revolucionária não estavam preocupados com a vitória ou derrota militares. Estavam preocupados em ser cidadãos e incutir sentido na história. E fizeram-no com coragem e lucidez exemplares.
É importante recordar este acontecimento de há mais de cinquenta anos num momento histórico em que os tempos estão fora dos eixos e em que perante o desconcerto do mundo temos de reaprender que o preço da nossa liberdade é uma espécie de morte.
No neo-império americano, um criminoso condenado, com pena suspensa, foi escolhido presidente por 77 milhões de eleitores. A população ainda está incrédula, tal qual uma galinha hipnotizada, que o poder supremo tenha caído nas mãos de uma criatura tão estúpida e criminosa.

Desde que tomou posse a 20 de janeiro, sucedem-se os atos de ilegalidade desenfreada e os escândalos judiciais, perfilhados pela rede de secretários do governo, congressistas, governadores, juízes do seu partido, influenciadores e outras figuras políticas. A apatia ainda é grande entre os opositores que acredita nos poderes regeneradores de uma constituição formal com 250 anos de idade mas que sofre com as divisões cada vez mais fundas da sociedade americana. A pouco e pouco, é de esperar que essa população comece a romper a sua imensa bolha de ingenuidade e a ver como é impossível simultaneamente “dominar um império com crimes e manter uma sociedade justa”.

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