Portugal 2025: Com que liberdade?

Crónica da Europa

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Vêm aí as eleições de 18 de maio. Entretanto, temos um Papa novo, um Trump cada vez mais doido, casas só para o Pokémon e salários, pensões e impostos a fazer escalada. mas no sentido contrário ao desejável. Isto em 2025. E como era em 1975, quando votei pela primeira vez em eleições livres e para todos?
Em 1975, votar era quase como ir a Fátima, mas com boletim de voto em vez de velas, cabines em vez de confessionários e muitas filas no país inteiro em vez de uma única procissão. O país tinha acabado de se livrar de quase meio século de ditadura e estava em modo “abertura total”: liberdades, partidos, cartazes, hinos, cravos, comícios com gritos e megafones — parecia o Rock in Rio, mas com muita ideologia e menos cerveja.
O voto era mais do que um dever — era uma religião cívica (coisas do Jean-Jacques). Cada um que saía da cabine de voto tinha um brilho nos olhos como se dissesse: “Participei na História! E sem censura!” Estávamos ainda no PREC (Processo Revolucionário em Curso), mas também podia ser o Processo de Ressuscitar o Cidadão.
E atenção: havia emoção, discussão, convicções. Cada partido tinha quase uma alma. A pessoa lia programas políticos como quem lia Camões — com paixão e dicionário ao lado. As conversas de café eram intensas; família, amigos e vizinhos discutiam se o MDP/CDE tinha futuro ou se o PS ia encostar à direita ou se o CDS teria vinte deputados. E tudo isto com a convicção de que o voto mudava mesmo as coisas. Era como lançar os dados do destino nacional — e eles ainda a rodar.

A cereja no topo? A Constituição de 1976, de leitura aborrecida e com escrita de pé-de-boi, como todos os documentos jurídicos, tinha uma frase que resgatava tudo: o objetivo de Portugal era criar “uma sociedade livre, justa e solidária”. Quase dava vontade de emoldurar (dizem que foi escrita por gente que lia Sophia de Mello Breyner nas horas vagas).

Cinquenta anos depois, estamos em 2025. Passámos do voto em êxtase ao voto em modo soneca.
A democracia ainda cá está, mas e o entusiasmo? Esse foi tomar um café e ainda não voltou. Votar hoje é, para muitos, algo que se faz com o mesmo entusiasmo com que se vai ao dentista. Só que menos vezes.
A abstenção está tão em alta que há propostas para ter lugar no Parlamento. Os jovens dizem que não votam porque “não se revêm nos partidos” — o que faz sentido, já que os próprios partidos têm uma identidade muito, mas muito mais nebulosa do que em 1975. Os debates eleitorais fazem pensar nisto:“Qual é a série da Netflix que vamos ver?”
E sim, temos liberdade. Muita. Tanta que alguns acham que a maior prova de liberdade é não votar. Outros votam contra os ciganos (acho mal). Outros acham que a democracia é uma app que devia ser atualizada. Só que, surpresa, os programadores (leia-se: governantes) continuam a usar o sistema operativo de 1975.
O jurista alemão Böckenförde (nome que parece de uma marca de salsichas, mas que foi filósofo a sério) já avisava: “O Estado liberal secular vive de pressupostos que não pode garantir.” Traduzindo: se ninguém fizer um esforço, a democracia estagna — tipo carro parado em segunda via. Ou como diria a filósofa Hannah Arendt; a liberdade política não vive do sofá. Se não te manifestas no espaço público, não estás a fazer democracia, estás só a olhar. Liberdade sem participação é como ir ao ginásio só para ver os outros — não conta.”
Agora, pausa para um momento “Latour em 2 minutos”. Bruno Latour, um francês muito esperto que pensava fora da caixa, propôs uma ideia meio maluca e meio genial: o Parlamento das Coisas. Sim, isso mesmo. Um parlamento onde não só os humanos, mas também os rios, as florestas, o clima, as vacas, os satélites e até o wi-fi e a IA teriam representação.
Imagine-se: “Senhor Presidente, o Tejo pede a palavra. Está cansado de ser poluído.” “A Serra da Estrela vota contra a construção desse resort.” “O clima global propõe uma moção de censura ao modelo económico.”
Parece estranho? É estranho. Mas pensando bem: se as coisas — ou melhor, os sistemas naturais e digitais que nos mantêm vivos — não têm voz no sistema político, como é que vamos resolver o colapso climático, a crise da habitação ou o preço da courgette no supermercado? Latour propõs uma política mais… coletiva, no sentido literal. Uma política em que a “coletividade” inclui humanos e não-humanos.
Um mundo em que o voto não é só sobre “quem manda”, mas sobre “como todos vivemos juntos”.
Parece que continuamos com um Papa que nos lembra que a coletividade ainda conta (mesmo que o grupo do WhatsApp da família sugira o contrário), uma juventude que protesta por clima, habitação, salários e TikTok livre. Mas temos um sistema político (basta dizer ‘sistema’, como no futebol) que parece uma telenovela: o cenário muda, mas os personagens repetem-se e a história anda aos círculos.
O mais irónico? Em 1975, Portugal estava a sair do império e a entrar na democracia. Em 2025, estamos a sair das ilusões. Em 1975 era o povo que seguia os governantes. Agora são os governantes que andam a correr atrás do povo, com vários passos de atraso e uns x-twitters desajeitados. Ou seja: estamos numa nova situação revolucionária mas com menos bigodes e mais memes.

Mendo Henriques

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