As razões pelas quais temos de viver à força felizes

Por: Beja Santos

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O paradigma do individualismo impôs-se na década de 1970, a partir daí foi-se desenvolvendo a indústria da felicidade e do desenvolvimento pessoal, com claro sacrifício de alguns pilares civilizacionais em que assentava a entreajuda, a solidariedade, as práticas do bem comum. “A Ditadura da Felicidade”, por Edgar Cabanas e Eva Illouz, Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2019, é um livro de denúncia de uma perspetiva redutora que a pseudociência da felicidade apregoa. É um ensaio que tem por detrás densa investigação, não se trata de uma denúncia provocatória, feita à toa. Os autores exprimem reservas baseadas em preocupações críticas epistemológicas, sociológicas, fenomenológicas e morais. O que esta pseudociência da felicidade procura inculcar nas nossas mentes é uma tentativa de legitimação de que a riqueza e a pobreza, o êxito e o fracasso, a saúde e a doença dependem exclusivamente das nossas ações. Para estes pseudocientistas, cujo ideário é o neoliberalismo puro, não existe uma sociedade mas apenas indivíduos. Os autores dirão, em dado passo, que no capitalismo do século XXI a felicidade tornou-se o bem transacionável fetiche de uma indústria global e multibilionária, para a qual convergem as terapias de autoajuda, a literatura de autoajuda, os serviços de coaching, o aconselhamento profissional, as dicas de autoaperfeiçoamento. O livro pretende contribuir para um vasto e intenso debate sobre a felicidade, a partir de uma perspetiva sociológica.

Um dia irrompeu a chamada psicologia positiva e ganhou foros de cidade em múltiplos auditórios, eram missionários de uma boa-nova, a psicologia convencional ficava fora de moda, a questão central era orientar as pessoas na busca da melhor parte de si mesmas. “A psicologia positiva assumia a tarefa de distinguir os meros palpites sobre a felicidade humana das afirmações comprovadas que podiam ser comercializadas em segurança como conselhos científicos e legítimos”. A fatuidade científica é dada como demonstrada pelos autores: “Passados quase vinte anos e mais de 64 mil estudos de investigação dedicados à análise científica daquilo que faz a vida valer a pena, a psicologia positiva alcançou pouco mais do que resultados dispersos, inconclusivos e até contraditórios”. Os fundadores desta pseudociência foram bem hábeis: “A psicologia positiva captou de modo inteligente os pressupostos culturais e ideológicos profundamente enraizados sobre o eu e vendeu-os como factos objetivos e empíricos.

Analisando a desigualdade, os autores analisam a psicologia positiva que funciona totalmente alheia aos problemas da proteção social, da redistribuição e do bem-estar social. A pseudociência valoriza os valores meritocráticos e individualistas como alavancas da felicidade, é totalmente alheia à redução da desigualdade económica. É uma doutrina totalmente redutora, como os autores apreciam: “Os investigadores da felicidade tentam fugir a qualquer questionamento cultural, histórico ou ideológico, insistindo que a sua abordagem científica impede que a sua definição de indivíduo feliz seja onerada com princípios morais, prescrições éticas e valores ideológicos”.

Enfim, esta psicologia positiva banha-se no neoliberalismo, que está saturado de valores individualistas. Para os psicólogos positivos a felicidade é boa desde que faça bem e seja veículo de autorrealização para o indivíduo. A crença da psicologia positiva de que temos que encontrar força de vontade para nos erguermos pelos nossos próprios meios, tem consequências sociológicas de grande amplitude: esvazia-se o eu no seu conteúdo comunitário e político, substituindo por uma autoatenção intensa, onde não têm cabimento as possibilidades de uma construção coletiva de mudança.

Não é à toa que a psicologia positiva aparece atrelada aos valores mais conservadores, ela é justamente favorável aos novos critérios empresariais e à chamada nova ética do trabalho. Hoje a ideia de “carreira” praticamente que desapareceu, as pessoas estão ligadas a uma sucessão de projetos de trabalho, vive-se a incerteza do mercado e na concorrência com todos os outros. A psicologia positiva veio ao encontro das exigências económicas e organizacionais caraterísticas do capitalismo neoliberal. A seleção dos trabalhadores é feita segundo os seus níveis de felicidade e positividade, trabalhadores felizes são aqueles que engrenam nas obrigações da autonomia e da flexibilidade, vai desaparecendo o controlo externo no trabalho que é substituído pelo autocontrolo. Em termos de cultura empresarial, pretende-se que os trabalhadores criem um elo afetivo e moral de compromisso e confiança com a própria empresa. O paradoxo é inevitável. A empresa quer gente feliz a trabalhar nela, gente que vai viver permanentemente estressada para que os consumidores tenham tudo quanto pretendem, os custos empresariais devem estar próximos do zero, responsabilizando-se o trabalhador por quaisquer atrasos ou perdas de desempenho. A produtividade é que conta na chamada empresa competitiva. E os autores observam: “É certo que não há nada de errado quando as empresas exigem aos trabalhadores que produzam, mas é errado manipular e deformar a linguagem de modo que acreditem que tudo o que as empresas fazem é para o seu próprio bem e não para benefício da empresa. É também dúbio levar os trabalhadores a acreditarem que os seus interesses são exatamente os mesmos da empresa, começando pelo facto de que a maioria dos trabalhadores não tem uma verdadeira palavra a dizer nas decisões relevantes da empresa”. E cita-se um autor que recorda que nenhuma empresa se acha livre de estar a promover uma cultura empresarial que vai cada vez mais destruindo o tecido social baseado na solidariedade e no apoio mútuo. O que a psicologia positiva pretende é realçar a individualidade e a responsabilidade pessoal, o resto não conta.

Um aspeto capital da obra passa pelo consumo do nosso tempo, fala-se no psidadão que é o cidadão funcional e feliz, estamos neste mundo para fruir, nele o nosso eu desabrocha e, paradoxalmente, há sempre uma sensação de irrealização, em que os indivíduos sentem sempre falta de alguma coisa. Aí o mercado de consumo é essa compensação efémera, a felicidade é tirânica e carece de que nos curvemos diante do mercado sempre à procura da novidade que nos acalma a tal sensação de irrealização.

Ensaio da maior importância, de leitura obrigatória.

Beja Santos

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