O grão-mestre do desenho de humor visto por José-Augusto França

Por: Mário Beja Santos

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José-Augusto França

O historiador e crítico de Arte José-Augusto França dedicou muita atenção ao trabalho daquele que terá sido figura cimeira das Artes Plásticas em Portugal, no século XIX. Rafael Bordalo Pinheiro foi um génio polifacetado: experimentou o teatro, foi figura obrigatória das tertúlias do Chiado, onde seguramente encontrou barro para os seus extraordinários de humor, ninguém ilustrou como ele na imprensa, é certo que no século XX houve ilustradores de têmpera, como Leal da Câmara, Francisco Valença, Amarelhe, Stuart, Almada Negreiros, Carlos Botelho, João Abel Manta ou Vasco, mas nenhum destes lhe tirou o cetro da realeza artística, pega-se nessa formidável galeria de desenhos e intui-se que basta adaptá-los aos tempos de hoje, desde o Zé Povinho, passando pelo execrado John Bull, à imensa panóplia de políticos de ocasião; e há o ceramista, notabilíssimo, nas Caldas da Rainha concebeu e fez sair da mufla obras de arte decorativa inultrapassáveis. Em O Essencial sobre Rafael Bordalo Pinheiro, José-Augusto França, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, dá-nos uma síntese do homem e da obra, numa redação bem peculiar, divertida, maliciosa quando necessário, do criador do Zé Povinho, quem puder também deve ler o seu trabalho maior, tem tido sucessivas edições desde 1980.

Bordalo nasceu em 1846, será ilustrador no último quarto de século, numa intensidade impressionante. Foi o primeiro de onze filhos, o mais novo chamou-se Columbano, um pintor que não precisa de adjetivos. Começou por ir para ator, as coisas não correram de feição, tal como os estudos universitários, onde andou a saltitar sem ter poiso certo. Faz amizades com Eça de Queirós e Ramalho de Ortigão. O seu desenho de humor aparece em 1870, faz caricatura de figuras representativas da sociedade intelectual lisboeta, mas também de políticos, como o Duque de Ávila e o Saldanha dos golpes de Estado. As suas estampas dos mais famosos atores da cena lisboeta provocaram espanto e admiração. Em 1875 Bordalo lançou A Lanterna Mágica, aqui são caricaturados não só os vultos intelectuais como Herculano, mas políticos como Fontes Pereira de Melo, Rodrigues Sampaio e Andrade Corvo, e posto a ridículo o bicho de Viseu. É criada a figura tutelar de Zé Povinho. O nome de Bordalo passa as fronteiras, é requisitado por importantes publicações, caso de The Illustrated London News. Apesar deste êxito e da crescente popularidade, Bordalo ruma para o Rio de Janeiro para ali colaborar num famoso jornal humorístico, O Mosquito. Meteu-se na vida política do país que o acolhia com uma certa imprudência. As figuras cimeiras do Império passam pela sua pena, ministros e padres, o próprio e simpático D. Pedro II e a filha. Cria um novo jornal, Psit!!!, durará poucos meses, e depois O Besouro, saíram nove números. Em 1879 resolveu regressar a Lisboa, voltou ao seu principal palco, o Chiado, o centro cultural da cidade, a curta distância de São Bento e do Terreiro do Paço e dos teatros do Rossio e da Rua da Palma. Estamos no período histórico do rotativismo, progressistas e regeneradores sempre engalfinhados, com eleições de chapelada, a empregar as clientelas, Zé Povinho sofre e Bordalo é implacável, vergasta a classe política, de ministros a conselheiros, de deputados a banqueiros fornecedores da Coroa, como Burnay. A questão colonial desperta com o Tratado de Lourenço Marques, começam a fervilhar as ideias republicanas, mas Bordalo é também bonacheirão e glutão, não lhe escapam figuras de fama internacional como Sara Bernhardt, os cantores de São Carlos. O António Maria torna-se numa publicação fundamental, ali têm presença não só o Zé Povinho como Maria da Paciência e tantíssimas figuras da política, mesmo a família real não escapa. Em 1880 é publicado o Álbum das Glórias, personagens políticas e intelectuais, com texto de Ramalho de Ortigão e Guilherme de Azevedo, retratos admiráveis. Depois do enterro de O António Maria, Bordalo dá à estampa Pontos nos ii, D. Carlos é o novo rei, entrou-se num período trepidante de sucessivos governos depois do Ultimato e de uma gravíssima crise financeira. O filho de Bordalo, Manuel Gustavo, é seu colaborador nos Pontos nos ii. As vicissitudes políticas dão aso à sua prodigiosa imaginação, o que se passa em São Bento, nas colónias, nos teatros, tudo fica sujeito ao seu olho crítico.

Sucede-se nova publicação, A Paródia, estamos já em 1900, contará com a colaboração literária de João Chagas, a arena da crítica mete política, finança, economia, burocracia, beneficência, instrução pública. A política era uma porca amamentando bacorinhos, a finança um grande cão famélico. A Instrução é vista como uma grande burra que escoiceia a gramática, estão sempre em cena os políticos José Luciano de Castro e Hintze Ribeiro, cresce a presença republicana.

Voltemos a outra dedicação de Bordalo, a de ceramista, a sua segunda profissão. Constituiu-se uma sociedade anónima que contou com o seu irmão Feliciano e subscritores entusiastas. A sua arte rapidamente angariou clientela. Como observa José-Augusto França, Bordalo teve uma casa de exposição e venda na Avenida, que foi visitada por D. Luís e por D. Maria Pia. Ramalho Ortigão, amigo fiel, escreveu um primeiro estudo consagrado à fábrica, em 1886, absolutamente convicto de que Bordalo era o único artista capaz de intervir na criação desde novo elemento de riqueza e glória nacional. Às obras de Bordalo foram conferidas medalhas de ouro, a França deu-lhe a Legião de Honra. A grande jarra Beethoven foi levada para o Rio de Janeiro, não tinha tido comprador em Lisboa e no Brasil também não, Bordalo acabou por oferecer esta obra-prima ao Presidente da República do Brasil, que a entregou depois ao Museu Nacional do Rio.

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Depois da sua morte, em janeiro de 1905, um grupo de amigos comprou uma moradia no Campo Grande, hoje Museu Rafael Bordalo Pinheiro, onde se pode ver uma parte significativa do seu trabalho, entre ceramista, desenhador e homem de imprensa. Ali podemos ver o Zé Povinho com a albarda e o manguito. Diz o historiador José-Augusto França que a qualidade do desenho de Bordalo melhorou com o tempo, mas jamais a imagem do herói, em mil outros desenhos, foi ou será tão poderosa como a do Zé Povinho. “Cem vezes Bordalo se autorretratou, com graças familiares ou de amizade, com os seus colaboradores, furioso numa cadeira de rodas, uma perna partida que não o deixa ir ao teatro, ou tossindo da bronquite que o matará, na plateia de São Carlos. A nossa opção é, porém, quando o vemos, em 1903, a dar lume a si próprio, numa história de cumplicidade entre o Bordalo acachinado de então e o brilhante galante de 1879. Desenho simbólico de uma carreira e da própria História de Portugal ou de Lisboa-Chiado que por ambos passou”. A verve de José-Augusto França esteve completamente à altura do génio de Rafael Bordalo Pinheiro. Para que conste.

Beja Santos

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