Sabe quem foi João Miguel dos Santos Simões e o que fez em Tomar?

Em Tomar há uma uma rua com o seu nome, que vai da Alameda Um de Março à Av. Egas Moniz.

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Em 1929 chegava a Tomar o jovem engenheiro têxtil João Miguel dos Santos Simões. Chamado por seu pai, José Rodrigues Simões, director e principal accionista da Fábrica da Fiação, um antigo e prestigiado empreendimento fabril iniciado pelos franceses Jácome Ratton e Timóteo Verdier, na segunda metade do séc. XVIII com o patrocínio pombalino.

O sítio de Tomar, com o seu rio Nabão, parecera-lhes adequado para nele instalarem o seu projecto de tecelagem.

José Rodrigues Simões, homem de origens humildes referenciado em Alcanena, feito e experimentado na Lisboa dos grandes negócios, investira neste filho.

Depois dos estudos liceais e de breve passagem pela Faculdade de Direito de Lisboa onde esteve até 1926, mandou-o, nesse ano, para Inglaterra para estudar no Manchester College of Technology. João Miguel passou depois a França, a Mulhouse, em cuja École Superieure de Filature e Tissage se diplomou em engenharia têxtil. Seguidamente estudou tinturaria em LeverKussen, na Alemanha e fez estágios de aperfeiçoamento na Checoslováquia e nos Estados Unidos da América.

Atentem neste percurso biográfico de preparação técnica. Manchester era desde o final do séc. XVIII, a pátria mundial da indústria algodoeira. E não só. Nela se referenciava, também, o fabrico de tecidos de seda e de maquinismos fabris produto da constante inovação tecnológica que caracterizava as suas oficinas. Depois, em França, na Alsácia-Lorena, cidade que referenciava os tecidos franceses numa tradição que remonta a 1746.

LeverKussen, apesar da ruína económica alemã saída da 1.ª Grande Guerra, pontuava pela sua indústria química cujo prestígio científico na tinturaria, ultrapassara a fama dos corantes da Manchester.

Parece ter sido cuidadosamente pensado este percurso, balizado nos centros mundiais de maior prestígio têxtil. Também, o famoso Engels, companheiro ideológico de Marx e filho de industrial têxtil germânico, fez idêntico percurso, porque seu pai desejava que ele fosse especialista em tinturaria de tecidos.

Há uma particularidade comum a todas estas cidades por onde João Miguel fez a sua preparação técnica: as elites que dirigiam estes empreendimentos têxteis, foram também conhecidas pelas suas actividades culturais, promovendo e patrocinando museus, escolas e hospitais. É como se a teoria económica gerada pelo êxito dos empreendimentos têxteis – o vulgarmente chamado sistema de livre-câmbio, tivesse como sua complementaridade natural, actos de concretização cultural ou de intervenção social.

Confiado na sua preparação técnica que esta envolvência lhe proporcionou, seu pai entrega-lhe a gerência da Fiação, num ano que acaba marcado pelo “Crash” da Bolsa da Nova York e crise económica mundial que provocou. Em fins de 1930 – começos de 31, os efeitos globais do desastre americano começaram a chegar a Portugal.

É pois errado supor que João Miguel é chamado à fábrica apenas por ser filho do seu pai. Não é um simples herdeiro chamado à herança, antes também o quadro técnico com preparação adequada para assegurar a gestão de um empreendimento que, pelo menos a nível nacional, sofria a concorrência de outras fábricas do norte do país.

Chegado a Tomar e instalado no mais significativo pólo empregador de mão-de-obra fabril, João Miguel é a novidade exótica, vestido de forma desportiva, calças de golfe, camisa e colete de jacquard, de colarinho em “V”, um cosmopolita, que circulava de moto Indian 7-9 HP, com side-cor, modelo 1923, com instalação eléctrica e conta-quilómetros.

Recorro ao que escreveu na edição de O Templário do passado dia 12 do corrente, o senhor Dr. José António Godinho Granada:

“A cidade pequena, simples, provinciana, embasbacada, ficou perplexa a observar aquele recém-chegado de calças à golf, desembaraçado. E logo se rendeu à evidência das suas grandes qualidades e capacidades. Santos Simões aliava uma sólida inteligência e uma profunda cultura por tudo quanto encontrava no caminho da vida susceptível de esclarecer dúvidas ou de criar beleza.

Santos Simões provocou na sociedade tomarense em que veio integrar, a maior revolução cultural que esta terra experimentou desde a estadia do Infante D. Henrique na administração da Ordem de Cristo.”

Esta transcrição, descreve o que vos trago na apreciação de João Simões, em Tomar. Nesta cidade assim, o que é que ocupava a opinião pública em 1929? Discutia-se um possível caminho-de-ferro entre Tomar e a Nazaré; apontavam-se anomalias ao funcionamento do ramal ferroviário até à Lamarosa, por onde passou a ser feito o serviço do correio; Raul Tamagnini pedia um liceu para Tomar, mas o Eng.º Maia Pereira, o “Zé Bumba” dos artigos de jornal da opinião contrária, escrevendo “um liceu na nossa cidade serviria meia dúzia em prejuízo de centenas de rapazes que fugiram da Escola Comercial e Industrial seduzidos pela capa e batina e ainda pelos primeiros degraus de uma escada que nem sempre conduz ao Capitólio” (opinião de 2 de Fev. 1929). A casa Manuel Mendes Godinho & Filhos, era a concessionária da luz eléctrica e preparava-se para só fornecer energia durante a noite, o que deu celeuma geral e obrigou a Comissão Administrativa que então ocupava a Câmara, a intervir. Por último, o desenvolvimento da circulação automóvel recomendava o alargamento da ponte e a pavimentação da levada. De facto, Correia & Catrau, Lda., vendiam carros “Nash” e” Ragby”; a Empresa de Viação Tomarense, comercializava veículos “Chevrolet”, os “Ford Lincoln” e os “Fordson” tinham como agentes oficiais a mesma Manuel Mendes Godinho & Filhos.

Uma tal Vulcanizadora, na rua Marquês de Pombal, reparava furos e vendia pneus. Estes os grandes temas que ocupavam os dois periódicos locais, o “Acção”, à esquerda e o jornal “De Tomar”, à direita.

E a cidade, do dia-a-dia? Para quem vinha de fora e procurava aposentadoria, podia escolher entre o Nabão Hotel, do senhor Silvério Lopes da Graça, o Hotel União Comercial, gerido pelo senhor Francisco Valente ou o novíssimo Grande Hotel de Tomar, do senhor Joaquim Pereira Duarte. No café Paraíso, agência do Diário de Notícias, vendiam-se postais com vistas de Tomar e deliciosas Fatias da China.

Na Farmácia Torres Pinheiro, vendia-se, por grosso e a retalho, “produtos químicos, especialidades farmacêuticas, águas minerais, artigos de borracha, fundas, irrigadores, pulverizadores, termómetros diversos, perfumarias, acessórios para farmácias, oxigénio, esterilização pelos métodos de Pasteur e material completo para operações”; o telefone era o número 6: Rafael Gomes d’Oliveira Estrela publicitava os seus serviços de cirurgião dentista e “prótese dentária com dentes artificiais”; Laurentino Miranda Veríssimo e António Gonçalves Pereira, alfaiates, vestiam os homens. Um cabeleireiro de senhoras disponibilizava-se para tratamentos e preparos em casa de cliente.

A actividade cultural passava por uma oferta comercial minimamente regular.

Os grandes actores dramáticos portugueses vinham representar a Tomar em companhias itinerantes. Alves da Cunha, Chaby, Satanela e Amarante, a companhia Rey Colço-Robles Monteiro, quase todos. Os manos Lima, Aquiles e Augusto, eram os grandes músicos da cidade. No cinema passavam filmes “em várias jornadas”, ou seja, hoje uma parte, amanhã outra. Primeiro mudos, depois sonoros, inovação precisamente acontecida neste ano de 1925. No Verão, projectados no Mouchão Parque. Um regalo!

Portugal tinha acabado de sair do 28 de Maio, e deste pronunciamento saíra a Ditadura Militar. Tomar era uma pequena cidade fechada sobre si mesma mas já com alguma oferta de serviços. Todavia dava-lhe importância o ser significativo núcleo castrense, numa pontuação nacional que remonta às invasões francesas, e dispor de uma rede de ensino primário concelhio com elevada taxa de escolaridade pelo que, aqui, o analfabetismo não atingia os índices catastróficos que, ao tempo, caracterizavam outras regiões nacionais. Também possuía quadros letrados de formação universitária em desempenhos profissionais de repercussão cívica: médicos, advogados, engenheiros, quase todos habilitados por Coimbra. Ou seja: na primeira metade do século XX, Tomar tem alguma qualidade funcional, ou seja, não é um simples “lugar onde” antes, também, um “lugar em que”.

É minha convicção que foi isto o que João Miguel percebeu logo que aqui chegou, apesar da pasmaceira local.

Por exemplo, os quadros militares oriundos do Colégio Militar e da Academia, muitos deles cadetes de Sidónio, aqui colocados por nomeação de serviço ou percurso de carreira, com uma formação ideológica de carácter nacionalista e culto dos valores intuídos na História da Pátria. Foram estes que se associaram na União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo e impulsionaram o aparecimento de uma Comissão de Iniciativa e Turismo, cientes da importância do caso tomarense.

Começaram pelo Convento e seus acessos. Um deles, Lacerda Machado, congeminou o jardim do Terreno do Castelo, que ainda hoje lá está. Quase todos se preocuparam em localizar e recolher testemunhos materiais da Ordem de Cristo, cujo inventário pode ser lido nos Anuais U.A.M.O.C. É a este grupo intelectualizado que João Miguel se junta com o seu contributo. Primeiro colabora na identificação da sinagoga judaica, feita armazém onde se vendia carvão e produtos afins, e promove o seu resgate graças ao mecenato de Samuel Schwartz, seguindo-se a criação de um núcleo museológico temático dito Museu Hebraico Abraão Zacuto.

Vem depois a sua indigitação como superintendente do Convento de Cristo, quando a tutela do Ministério das Finanças começou a abrir mão de alguns casos nacionais mais procurados pelos “touristes”, como então se dizia. Ou seja, até então, os monumentos nacionais eram vistos como património que garantia a dívida pública, logo bens que não podiam ter outra utilidade ou uso. A tal tinha obrigado a situação financeira do país.

Governava-se em Ditadura Militar, como disse, até que em 1933 esta é substituída pelo Estado Novo com a Constituição desse ano. “Neste ano de 1933, que na Alemanha começava com a conquista do poder por Hitler, os povos e os homens da Europa estavam divididos e eram dominados e assediados por novas ideologias totalitárias que prometiam “mudar de vida e mudar o homem”. Outros, acolhiam-se na “ordem autoritária das direitas”. Outros ainda, continuavam a viver e a defender os princípios e as instituições ameaçadas da democracia liberal (Jaime Nogueira Pinto, António de Oliveira Salazar. O outro retrato, Lisboa, 2007, p.95).

Nesta renovação política, o turista passou também a ser encarado como um possível divulgador da realidade positiva de Portugal, aquele que desmentiria no seu país de origem, ao regressar, a nossa desgraçada imagem de periferia europeia atrasada, analfabeta, andrajosa relapsa à ordem e à disciplina e sem arranjo político sustentável, como agora se diz.

Foto DIGITILE

João Miguel tinha antecedentes de preparação cultural bem estruturada. Seu pai era um importante bibliófilo, membro da Associação dos Arqueólogos Portugueses, amigo de eruditos e estudiosos da história da arte portuguesa, como José de Figueiredo, João Couto, José Pessanha, entre outros. Era sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa, visitava exposições, frequentava tertúlias de referência cultural indiscutível. João Miguel foi muito marcado pelo livro de Carlos Haupt, Die Baukunst der Renaissance in Portugal, a Arquitectura portuguesa da Renascença, obra publicada em 1890 onde este notável arquitecto e historiador da arte se debruçou sobre os contributos portugueses da segunda metade do século XVI, nomeadamente as produções dos arquitectos Terzi e Torralva. Só traduzido para português em 1922, a obra inclui esboços e gravuras onde se destacavam elementos decorativos que tinham impressionado Haupt. É este modelo formal de ilustração que João Miguel vai seguir, quando elabora a separata sobre a sinagoga.

Até 1927, foram surgindo mais estudos do arquitecto alemão sobre a arte portuguesa, mas certamente João Miguel não precisou esperar pela tradução portuguesa já que se exprimia, com clareza, em oito línguas, uma capacidade que muito impressionou o meio tomarense: uma personalidade tão cosmopolita, capaz de se expressar e entender para além do francês comercial, era um fenómeno! As mais das vezes, vestido à inglesa e a dirigir a principal fonte de emprego fabril na Tomar da década de 30, passou a ser referenciado como “John da fábrica”, “Jones” em corruptela popular.

O seu dia de trabalho foi sempre marcado por regularidades formais: de manhã e à tarde, na fábrica; lanche à inglesa; depois do jantar, ida ao Café Paraíso. Feito vogal da Comissão de Turismo local, era requisitado para guiar visitas aos monumentos locais quando aparecia algum visitante de relevo. Brilhava pela clareza expositiva, servida por um inteligência e memória notáveis e tornava novidade as coisas sepultadas há muito tempo. Passou a fazer palestras sobre os monumentos de Tomar, abertas a quem quisesse aparecer para o ouvir.

O entusiasmo que emprestava a tudo quanto motivava o seu interesse, levou-o a percorrer o mundo no seu período anual de férias. O seu interesse pela fotografia e pelo cinema advieram da sua permanente curiosidade pela novidade e pelo contraste. Foi também um hábil desenhador. Na fábrica foi um gestor moderno, sempre atento às inovações tecnológicas e aos aspectos sociais dos que consigo colaboravam: balneários, posto médico. Tratamento diferenciado para as operárias que aleitavam os seus filhos. Encontrei dois pormenores curiosos à cerca disto.

A qualidade moderna dos balneários da fábrica, obrigou a Misericórdia a melhorar a envolvente material em que acontecia o seu serviço balneário, nomeadamente os banhos que disponibilizava aos sábados à tarde. Mediante uma senha de baixo custo, o utente usava uma casa de banho com uma larga banheira por imersão, fornecendo a Misericórdia sabão. Outro aspecto foi recordado agora, aquando das Festas, pela revista “Enfim, a Festa”, quando os operários da fábrica passaram a usar uma espécie de farda com as hierarquias funcionais, sinalizadas por fitas de nastro, à maneira de divisas militares. Tratou-se de uma medida nacional, adaptar uma solução de vestuário ao exercício de uma função laboral uma vez que o uso de roupa própria era inadequado a tal. Mas como os tempos eram de ordem quase militarizada, muitos entenderam isto como subsidiário da disciplina alemã. “John”, todavia, foi sempre anglófono, fiel a sua matriz de formação primeira. Muito britânico no liberalismo da cultura vivida, mas capaz de admirar o sucesso científico alemão, quando rebentou a 2.ª Guerra Mundial foi disponibilizar-se à embaixada inglesa de Lisboa e tempos depois acabou contactado para, secretamente, ir buscar três pilotos ingleses a Tancos e entregá-los a um barco inglês que os aguardava na Figueira da Foz. Desta vez conduziu sozinho o Ford V8 de 2.200 centímetros cúbicos, dispensando o motorista Fausto.

Em Tomar nunca o viram fazer política partidária, coisa sempre alheia à actuação deste homem exuberante, explícito no modo natural com que usava as novidades tecnológicas, comunicador sem demagogias nem exibicionismos fáceis. Foi o revelador do óbvio singular que rodeava os tomarenses e eles perceberam-no, fazendo-o cidadão honorário em 1953.

À maneira pombalina, o administrador da fábrica vivia no seu interior. A casa evocava os começos do empreendimento, na 2.ª metade do século XVIII, talvez mais Verdier do que Ratton. No largo espaço que vinha desde o Açude da Pedra, que restaurou, mandou construir ele uma piscina, quase que à maneira de Luís da Baviera, com estátuas, topo em cascata e nada de simples tanque rectangular. Os amigos e os filhos dos amigos podiam frequentá-la, depois de telefonarem para a fábrica, a comunicar a vontade de uma banhoca. Recebiam uma senha de controlo na portaria e lá se iam banhar. Perto da piscina instalou o primeiro parque de campismo de Tomar, embora privado, para o qual construiu a sua própria roulote.

Praticou quase toda a modalidade de desporto, foi nadador, velejador, skiador. Ou seja, por detrás daquele portão da fábrica estava parte do mundo cosmopolita deste “príncipe”. Uma espécie de portão de 202, do Jacinto de A Cidade e as Serras de Eça de Queiroz. “Este príncipe” – o queiroziano – concebera a ideia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. Assim o “John” que parece ter adoptado a forma algébrica da teoria de Jacinto: suma ciência vezes suma potência, igual a suma felicidade. Assim ele o foi, até à década de 50.

Problemas com as matérias-primas de base, o aparecimento das fibras sintéticas mais baratas, desencontros societários na empresa, tudo se polariza em 1956, com a morte do pai a que era tão ligado, pilar seguro nas rotinas do seu mundo profissional. Conta-se que um dia, muitos anos antes, aproveitando as férias para viajar pelo estrangeiro com orçamento apertado, a subida dos preços na Europa deixou-o a descoberto. Escreveu para a fábrica, pedindo reforço, mas nem mesmo este o livrou de ter de regressar a Portugal. Avisou o irmão José pedindo-lhe que dissesse ao pai para o ir buscar ao Sud-Express, que parava no Entroncamento. “Ó pai, o João vem à cobrança”. Lá foram esperá-lo e viram-no sair do comboio com o revisor, que vinha receber o dinheiro do bilhete. “Eu não dizia, Pai, que o João vinha à cobrança”.

Estas histórias de natural à vontade que dele se contam, não desmentem o meticuloso filatelista, o erudito coleccionador de comboios eléctricos em miniatura, o arrumadíssimo alinhador de fichas de notação de pormenores, sobretudo quanto aos azulejos que viu em todo o mundo. O que lhe foi útil, primeiro, enquanto conservador ajudante do Museu da Arte Antiga, nomeado para organizar o respectivo museu nacional, depois enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, a partir d 1956.

Deixara Tomar, dois anos antes, pelas razões atrás referidas. Mas o coração, que o trairia em 1972, por aqui se referenciava pelo afecto dos amigos, aqui morava o Castelo da sua “Grã-Ventura”.

Quando ele morreu, o escritor Ruben Andersen Leitão, escreveu assim, no então Diário Popular.

“Admirava profundamente o João dos Santos Simões. Um dos homens mais notáveis que Portugal produziu, à escala nacional e internacional, nestes últimos quarenta anos. O John era uma inteligência fora do comum, tinha o raro condão de saber relacionar, transmitia a quem se aproximasse dele um entusiasmo de novidade, um encanto de conversa, um desdobramento de companhia. O saber era imenso, sobretudo quando falava de azulejos, de artes plásticas, do romantismo, de tudo na sua harmonia bem integrada no fenómeno da Cultura. Vi-o pela primeira vez em Londres, no ano longínquo de 1947. Ali, no Victoria and Albèrt Museu – o então para mim desconhecido Eng.º João dos Santos Simões – fez, em língua inglesa, uma das conferências mais estupendas a que assisti. Era fácil a comunicar o difícil, generoso na distribuição do colossal saber que craniava ao longo de uma pesquisa que o levou a dar voltas a Portugal, inúmeras viagens à Madeira, aos Açores e ao Brasil, para não falar nas muitas visitas de trabalho a universidades inglesas, holandesas, americanas, alemãs, etc. Quem alguma vez assistiu às suas palestras, no velho edifício da Fundação Gulbenkian, nunca mais se esquecerá da espantosa facilidade de exposição que o John transmitia ao vasto mundo em que pensava.

(…) O John era uma figura europeia, apaixonante, o mundo fica mais pequeno sem a sua presença, – um dos raros homens civilizados que nós produzimos nestas últimas décadas. Integrou o fenómeno do azulejo na sua verdadeira dimensão, ele sabia tudo, ou quase tudo como ele afirmava em relação ao vasto panorama da arte portuguesa. Deixa-nos uma obra fundamental – O «Corpus da Azulejaria Portuguesa» – deixa outra obra da maior verdade: o respeito e a admiração de críticos de arte e professores estrangeiros pela nossa Cultura”.

Foi este homem assim que, com um grupo de tomarense onde Nini Ferreira se incluía, quem restaurou, em 1950, as interrompidas Festas dos Tabuleiros.

No ano em que chegou a Tomar, 1929, houve festas. Eram promovidas pela Associação Comercial e Industrial de Tomar e aconteceram nos dias 7, 8, 9 e 10 de Junho. Eram publicitadas como “Grandiosos Festejos do Espírito Santo”. As decorações ficavam a cargo de uma empresa nortenha do senhor Constantino Lira e já eram referenciadas pela Sociedade de Propaganda de Portugal. Em 1934 foram interrompidas, dada a situação financeira do país e nunca mais tinham voltado. João Simões vai recuperá-las. Tinha ao dispor a matéria-prima humana, as mulheres e homens da sua fábrica, arranjou dinheiro para os cestos, recuperou a arte da montagem, disciplinou a criatividade da sua decoração e remate em pomba de algodão ou cruz de latoeiro, implicou todas as freguesias e deu aos tomarenses um motivo de autenticidade para se superarem de quatro em quatro anos. Como não celebrar, neste ano de 2007, ano de Festa dos tabuleiros, quando se perfazem 100 anos do seu nascimento, estas coincidências todas?

Ele que foi uma pessoa que tanto gostou de nós e nos civilizou em projecto que ainda hoje nos serve? É uma visita comovente ler o que ele escreveu, em 30 de Abril de 1950, sobre as nossas Festas:

Quem assistiu à primeira saída das coroas precursoras das Festas do Espírito Santo e viu a alegria que se espelhava nos rostos das pessoas idosas de todas as condições sociais pôde apreciar quão fortes são as raízes que prendem estas festividades, mais conhecidas por Festas dos Tabuleiros, à tradição popular e ao sentimento das gentes desta terra.

As pétalas das flores, que em chuva de singela beleza caíram continuamente sobre o cortejo que desfilou com dignidade através das ruas de Tomar, foram as bênçãos agradecidas dos tomarenses por verem reatar uma tradição que ameaçava perder-se e que é uma das mais belas manifestações do folclore nacional.

Instituídas ao que parece, pela Rainha Santa Isabel, as Festas do Espírito Santo são, reminiscências das festas pagãs à deusa Ceres. Mas a interpretação popular com um alto sentido de terna misericórdia e de caridade, com uma ingénua expressão de arte traduzida nos graciosos tabuleiros, com uma garrida nota de frescura e de mocidade dada pelos pares jovens que intervêm no cortejo, tudo nimbado por uma auréola de religiosidade que as eleva em beleza, fazem das Festas do Espírito Santo as mais queridas desta região e umas das mais famosas de Portugal.

Importa conservar-lhe o cunho tradicionalmente popular, a cor, a alegria e o simbolismo mas é justo que também se lhe juntem motivos que interessem os turistas menos afeitos às tradições populares para os atrair a este centro de turismo cada vez mais prestigiado.

As Festas dos Tabuleiros vão realizar-se. O entusiasmo de quantos colaboram nelas não tem limites. A cidade vibra de satisfação. E de fora chegam, a cada momento, estímulos e boas palavras.

Pois que este reatar da tradição dos Tabuleiros seja mais um motivo de alegria e de beleza a juntar aos muito que Tomar possui.

(João dos Santos Simões in “Cidade de Tomar”, 30/4/50, suplemento “Tabuleiros”).

Minhas senhoras, meus senhores. Peço desculpa, mas tenho de ficar por aqui. Ainda tenho de passar pela Fábrica, para comer uma fatia do bolo do centenário que foi comemorado na 3.ª feira.

Guardaram-me uma fatia no frigorífico, porque não me foi possível lá estar. Sei que lá esteve a tocar, como é costume naquele dia, a Gualdim Pais, mais eu não podia mesmo. Tive que estar a escrever isto que agora vos acabo de ler. Até à próxima. Muito Obrigado.

Luís M. P. Graça

Consulte a biografia de João Miguel dos Santos Simões

https://digitile.gulbenkian.pt/customizations/global/pages/projeto/biografia.html

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