Rede das farmácias: o SNS mais próximo do cidadão

Por: Beja Santos

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É do domínio público que Portugal possui uma cobertura farmacêutica invejável. Invejável pela capilaridade (estende-se por todo o país), invejável pela natureza dos serviços que presta. Na verdade, um dos fatores que permitem que a interioridade não seja tão insustentável é haver uma farmácia num ponto remoto, aguentando-se sabe Deus como; e os serviços que presta granjearam a confiança com que o trabalho do farmacêutico é encarado por qualquer comunidade: dispensa de medicamentos com conselho, vacinação, dispensa de medicamentos a doentes com hepatites ou com VIH, mas há muito mais serviços que os utentes conhecem bem.

Quando se lê que há farmácias em perigo, que a tal rede pujante pode fragilizar-se, há questões maiores a que não podemos deixar de dar atenção, desde os representantes dos partidos políticos a nível local, os dirigentes autárquicos, as empresas, os cidadãos em geral. Em primeiro lugar, a rede de farmácias significa no nosso país o SNS de proximidade, conflui com a extensão do serviço de saúde, com o serviço de atendimento permanente, com a unidade de saúde familiar, com o atendimento do médico de família, com a Rede Nacional dos Cuidados Continuados e Integrados, enfim, com todas as parcelas constitutivas dessa orgânica que fez agora quarenta anos, o SNS, a quem tanto devemos pelo aumento da esperança de vida, pela quebra drástica da mortalidade infantil, pelos indicadores de vida com mais qualidade.

Não estar a rede de farmácias dentro do SNS, em termos jurídicos, é um paradoxo, mas não é o único. O farmacêutico é um profissional de saúde desaproveitado, estamos a décadas de distância do tempo em que na farmácia se dispensavam medicamentos, nesses tempos já remotos até se vendiam pastas dentífricas não medicinais e muitos produtos que a evolução dos tempos e a categorização da farmácia fizeram transferir para espaços de grande consumo onde não é indispensável a presença do profissional de saúde.

Mas há um paradoxo ainda mais chocante desse desaproveitamento: a farmácia e o farmacêutico são imprescindíveis no universo da saúde do nosso futuro, ninguém o ignora. Envelhecemos imenso, precisamos cada vez mais de promoção para a saúde e de prevenção da doença, há que encontrar soluções para que o farmacêutico intervenha, como aliás está a acontecer um pouco por toda a parte na Europa em programas de suporte à adesão terapêutica, com especial realce para os doentes crónicos. São programas contratualizados que levam a intervir em áreas como a asma/doença pulmonar obstrutiva crónica, a diabetes tipo 2, o foro cardiovascular. Os resultados conhecidos são lisonjeiros, esses doentes crónicos vivem mais e melhor, são ganhos em Saúde. Há programas associados à dispensa de medicamentos para maximizar o benefício/risco do medicamento. Trata-se de programas que requerem uma relação estreita entre a farmácia e o médico que monitoriza o doente crónico, que introduziu, por exemplo, um medicamento novo na terapêutica e precisa de ir conhecendo regularmente a evolução do doente. Outra forma de ganhos em Saúde.

Este é um breve bosquejo do que se devia estar a fazer já entre nós, por razões essenciais: em nome da sustentabilidade financeira do SNS, para evitar os entupimentos das urgências, hospitalizações desnecessárias, atos operatórios que poderiam ter sido evitados com o acompanhamento do doente. Tomaram-se medidas, ao longo dos últimos anos, que permitem vislumbrar um horizonte de confiança para o SNS. Os doentes estão a beneficiar de cada vez mais medicamentos genéricos, e pena é que a quota dos genéricos não esteja a crescer mais expressivamente.

Porém, os utentes e os doentes terão tudo a perder se a rede das farmácias se fragilizar, comprometer-se-á não só a interioridade, e temos que dizer abertamente que é intolerável não contratualizar mais serviços com as farmácias num tempo em que diariamente a comunicação social nos bombardeia com listas de espera, doentes abandonados nas urgências, e não nos podemos abstrair da perspetiva de despesa colossal com doenças como o cancro, as do foro cardiovascular e respiratório, para já não falar na diabetes, nas demências e nas do campo neurológico. Surgem doenças bem dispendiosas, e temos esse paradoxo que é não apostar cada vez mais na promoção para a saúde, contando com todos os profissionais, com a literacia em saúde, com a cultura do medicamento que se salda no seu bom uso.

Há uns anos atrás, a Fundação Calouste Gulbenkian apoiou a realização de um documento intitulado “Um Futuro para a Saúde”, talvez a peça mais relevante que se produziu para que o nosso futuro inove no modo de encarar a Saúde. Ali se diz claramente que precisamos de um novo pacto para a Saúde, nele todos devemos ter um papel a desempenhar, esse sistema de saúde deverá centrar-se nas pessoas e basear-se no trabalho de equipa. Documento visionário, foi aplaudido, mas está a ser pouco praticado: a saúde começa em casa, a saúde cruza-se com a alimentação, a harmonia ambiental, a cultura, os autocuidados, os cuidados partilhados, a responsabilidade em cuidar-se e ser cuidado. É neste vasto contexto de uma sociedade que se quer mais saudável, que as farmácias, que ouvimos notícias inquietantes quanto à eventualidade de insolvências e falências, deviam intervir na promoção para a saúde, na prevenção da doença e para que utentes e doentes possam beneficiar das terapêuticas mais adequadas.

Não haja ilusões, sem estas parcelas do SNS de proximidade, sem uma rede de farmácias ainda mais atuante, iremos perder a prazo aquilo que os pais do SNS visionaram. Que a interioridade se acautele e que os centros urbanos se interroguem sobre o que vão perder.

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