Porquê grande parte dos trabalhadores franceses vota Frente Nacional

Por: Beja Santos

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ggggg 1Didier Eribon, filósofo e sociólogo francês de renome internacional, ganhou notoriedade com uma biografia de Michel Foucault e os seus trabalhos sobre os homossexuais, a moral minoritária e a equação entre conservadores e a esquerda francesa. O seu livro “Regresso a Reims”, Publicações D. Quixote, 2019, tem tido uma repercussão transcontinental pelas apreciações que o escritor faz ao crescimento dos movimentos populistas de extrema-direita na Europa. O pensador socorre-se ao regresso à terra natal, Reims, onde os trabalhadores votavam indefetivelmente pelo comunismo e gradualmente têm vindo a aderir ao ideário da Frente Nacional. Uma viagem a Reims acaba por ser uma dolorosa mas pertinente viagem aos porquês da explosão do populismo, da xenofobia e do estado atual dos pensamentos minoritários.

Regressa para se reconciliar com a família (“ou, mais precisamente, de uma reconciliação comigo mesmo, com toda uma parte de mim que eu tinha recusado, rejeitado, renegado”). É íntimo, numa larga tradição da intelectualidade francesa, nomes como André Gilde, André Malraux, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Roland Barthes, são alguns dos nomes que ocorrem quando a escrita esventra relações familiares, quadros emocionais, divisões ideológicas.

O seu regresso a Muizon, depois da morte do pai, traz-lhe questões novas, a ele que escrevera sobre a vergonha sexual e que inopinadamente se mostrava embaraçado com a vergonha social, ele mentira, na sua trajetória para a celebridade, a respeito das suas origens de classe. Sentira que fora sincero na sua fuga para a grande cidade para ir viver a sua homossexualidade, mas manipulara a autobiografia.

Na sua reflexão, admitia que nunca chegara a partilhar os valores da classe dominante. E ali, em Muizon, trinta anos depois, perturba-se diante de fotografias, recorda outros autores que escreveram sobre a morte do pai e lança-nos na árvore genealógica numa tentativa para entender a classe operária, a bandeira vermelha, aquele mundo onde campeava a distribuição inigualitária das oportunidades. Lembra os trabalhos duros dos seus pais, são páginas espantosas, há uma ternura incontida que se espalha pela superfície das palavras. Descemos à geração dos avós, outro patamar de vida dura, o falanstério, o álcool, a mulher sem direitos, os equívocos de trabalhar para os alemães no tempo da Ocupação.

A sua memória inflete para o marxismo da sua juventude, a sua convicção de que ao ler Marx e Trotsky estava na vanguarda do povo. Deixava-se fascinar por aquilo que Sartre escrevia a respeito da classe operária. “Interessar-me por Marx, por Sartre, era para mim uma forma de sair do mundo dos meus pais, imaginando que era mais lúcido que eles sobre a realidade da sua própria vida”. Começam as incompreensões com os pais, o futuro filósofo vai marcando distâncias.

Voltamos atrás, ao casamento dos pais, em meados do século, a viver num quarto mobilado, não havia casa de banho mas água corrente e um lavatório na sala. “De Inverno, o fogão de sala a carvão mal conseguia aquecer os dois aposentos e nós vivíamos transidos de frio”. E adianta: “Experimenta-se na carne a pertença de classe quando se é filho de operário”. Nos anos 1960, a vida melhora, mudaram-se para um prédio de renda económica. Começa a sua vida liceal, o mesmo é dizer que começou o seu desligamento com a pertença de classe, foi um ato consciente, era a sua salvação, assim pensava.

Depois de analisar o itinerário dos seus irmãos, olhando à volta ele é forçado a questionar o que se terá passado para que naqueles meios operários se começasse a votar na Frente Nacional. Esmiuça o que foi a unidade de esquerda, com François Mitterrand e o fracasso do seu programa, a emergência da globalização, a vertigem da circulação de pessoas, capitais, mercadorias. Diz-nos sem ambiguidades que o discurso e sucesso da Frente Nacional foram, em vários aspetos, favorecidos e mesmo convocados pelos sentimentos que animavam as classes populares nos anos 60 e 70. Afinal nos meios operários brancos havia um racismo estranhado, o argelino era um concorrente, e havia a agravante de os comunistas terem militado contra a guerra da Argélia. Agora não havia razão para deixar o racismo submerso. E chegaram muitos estrangeiros e nos meios operários considerava-se que os trabalhadores franceses estavam a ser laminados por esses sujeitos que até aceitavam ganhar menos e viver em condições deploráveis.

O sociólogo e filósofo aprecia as mudanças operadas, não omite as extremas dificuldades em que viveram os seus pais para que ele estudasse na universidade, ele vai descrever os anos 60 e 70 admiravelmente. E regressar a Reims permite a Didier Eribon reconhecer que foi ali que conseguiu construir-se como gay antes mesmo de se assumir e se reivindicar enquanto tal. E descreve o mundo gay do seu tempo, sem cores róseas nem sentimentos tenebrosos. E é neste contexto que o autor nos oferece o testemunho do seu percurso intelectual, o seu encontro com a sociologia e com as causas que constituem o seu currículo universitário.

Este “Regresso a Reims” é uma metáfora, constitui o pretexto para alguém evocar o mundo operário da sua infância, reconstituir a sua ascensão social, num assomo de sinceridade que nos comove abre mão de uma reflexão poderosa sobre classes sociais, o sistema escolar, a criação de identidades, a sexualidade e a diferença de género e destemidamente, com uma coragem arrepiante, desvela o que se alterou em profundidade no nosso sistema democrático, e particularmente no caso francês dá uma chave explicativa para a mudança de padrões de voto da classe trabalhadora, para conforto ou desconforto de muitos, abre-se a porta à compreensão como durante décadas se assumia a pertença a uma classe e como essa identidade se deteriorou e se delegou o voto no racismo visceral, na xenofobia destemperada, na quimera populista. De facto, são muito mais complexas daquilo que contamos a nós próprios as raízes da desigualdade e a delegação de voto – e nesse oceano de perplexidades que não ousamos dissecar, passa-se de uma posição de querer transformar o mundo num sonho de igualdade numa tormenta de ódio.

A tradução de João Carlos Alvim torna esta leitura ainda mais enriquecedora.

De leitura obrigatória.

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