Terra Sangrenta, a Europa entre Hitler e Estaline: Não li nada de tão importante este ano como esta aparatosa e original análise histórica

Por: Mário Beja Santos

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Timothy Snyder

É uma edição revista e atualizada com um novo epílogo, trata-se de uma narrativa que não nos dará descanso até à última página, uma viagem que começa nas fomes estalinistas e nos faz palmilhar até às marchas da morte de 1945, iremos percorrer em sufoco terras de fronteira que constituíram a questão nevrálgica das obsessões ideológicas de Estaline e de Hitler, Polónia e Ucrânia, Bielorrússia e Estados Bálticos, seremos confrontados com dezenas de milhões de civis que foram mortos à fome, espancados, gaseados e assassinados por autoridades e forças militares de diferente ordem, tanto da URSS como da Alemanha nazi.

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Até muito recentemente, a historiografia que investiga e explica os acontecimentos entre a ascensão dos poderes ditatoriais de Estaline e Hitler catalogava as monstruosidades deste período falando do Gulag, do Grande Terror, do paranoico antissemitismo nazi e do Holocausto. Ora, os campos de morte na Europa neste amplo espaço a que o historiador Timothy Snyder designar por terra sangrenta revela aproximações aterradoras que são uma lição utilíssima para ajudar a compreender alguns dos mais inquietantes conflitos do nosso tempo.

Terra Sangrenta, a Europa entre Hitler e Estaline, Publicações Dom Quixote, outubro de 2023, é uma narrativa que nos faz abalar a compreensão que tínhamos do terror estalinista, da demência racial de Hitler, dos seus propósitos expansionistas, e como são chocantes analogias de duas estratégias imperiais.

Esta soberba investigação de Timothy Snyder, aclamada e reconhecida como obra de consagração de um dos maiores historiadores do nosso tempo, é profundamente incómoda para algumas mantras instaladas, quase mitologias, o genocídio judaico circunscrito a um processo de matança em grande escala e centrado em Auschwitz; a Grande Guerra Pátria, uma façanha de heroísmo desmedido centrado na abnegação russa. Acontece que a história envolvente é muitíssimo mais complicada e o martírio dessas dezenas de milhões de civis revelam que a hecatombe teve mais dimensões.

É, pois, uma investigação crucial que não nos dará tréguas, tem o poder de nos fazer alterar pontos de vista quanto a rótulos simplistas sobre tiranias, massacres, destruição de países, ódios raciais – uma História confecionada por vencedores e que conseguiu sobreviver durante a pós a Guerra Fria. É uma análise profundamente incómoda, veja-se logo esta apreciação feita no prefácio: “O assassínio em massa na Europa é normalmente associado ao Holocausto e o Holocausto a um rápido massacre industrial. A imagem é demasiado simples e limpa.

Nos locais onde foram cometidos os massacres, tanto pelos alemães como pelos soviéticos, os métodos de homicídio eram bastante primitivos. Dos 14 milhões de civis e prisioneiros de guerra mortos das guerras sangrentas entre 1933 e 1945, mais de metade morreu por lhe ter sido negado o acesso a alimentos.

Os europeus privaram deliberadamente de alimentos outros europeus em números horripilantes em meados do século XX. As duas maiores ações de assassínio em massa, depois do Holocausto – as fomes dirigidas por Estaline no início dos anos de 1930 e a privação de alimentos que Hitler impôs sobre os prisioneiros de guerra soviéticos no início dos anos 1940 –, envolveram este método de homicídio.

À privação de alimentos seguiu-se o fuzilamento e, depois, o gaseamento. No Grande Terror de Estaline, em 1937-1938, foram fuzilados quase 700 mil cidadãos soviéticos. Os cerca de 200 mil polacos mortos pelos alemães e pelos soviéticos durante a sua ocupação conjunta na Polónia foram fuzilados. Os judeus mortos no Holocausto tanto podiam ser gaseados como fuzilados.” E o autor conclui, ainda no prefácio: “Este estudo une os regimes nazi e soviético, une a história judaica e europeia, e uni as histórias nacionais. Descreve as vítimas e os perpetradores.

Aborda as ideologias e os planos, bem como os sistemas e as sociedades. Esta é uma história das pessoas mortas pelas políticas dos líderes distantes. As terras natais das vítimas estendem-se entre Berlim e Moscovo; transformaram-se em terras sangrentas depois da subida ao poder de Hitler e Estaline.”

A introdução dá-nos o enquadramento da Europa do pós-Guerra e o sonho alentado por Hitler e Estaline, as suas visões imperiais, cobiçavam as mesmas terras. Teremos acesso às fomes soviéticas, a matança dos bodes expiatórios, sobretudo depois dos desastres da coletivização das terras, a criação do dogma do “socialismo num só país”, os julgamentos de pseudo-traidores, dos chamados desviacionistas, a liquidação dos polacos soviéticos; a constituição da Europa de Molotov-Ribbentrop, a destruição da Polónia e as execuções alemãs e soviéticas, a Alemanha nazi expandia-se, os soviéticos também não só na Polónia mas aumentando as repúblicas ucraniana e bielorussa para o Ocidente; é estarrecedor o quadro destas matanças, desde simples prisioneiros de guerra aos intelectuais de lealdade duvidosa; e assim chegamos ao apocalipse da invasão alemã em terras soviéticas, e o esforço deliberado do invasor em matar pela fome, desde Leninegrado à Ucrânia; é neste território ocupado que Hitler e os seus sequazes montam a solução final da questão judaica, da Bielorrússia à Polónia, da Lituânia à Ucrânia, os judeus convergem para guetos e campos de concentração; e assistimos às fábricas de morte nazis, isto enquanto a partir de 1943 a URSS contra-ataca e inverte-se o sentido da guerra, haverá uma sublevação em Varsóvia, sufocada com toda a brutalidade, no ano seguinte o gueto será rasado; descrevem-se as limpezas étnicas, as alemãs e as soviéticas, cresce o êxodo das populações, as deportações; seremos confrontados com antissemitismo estalinista, aliás, antes de morrer, em 1953, Estaline urdira mais uma conspiração, desta vez envolvendo médicos judeus, tudo isto numa época em que a URSS implanta estados comunistas na Europa de Leste e Estaline decide purgas de camaradas que lhe foram fiéis.

Não querendo privar mais o leitor destas muitas centenas de páginas empolgantes, escritas com uma mestria inatacável, pretendo só chamar a atenção para derradeiras observações do autor de tão extraordinária investigação:

“Os sistemas nazi e estalinista devem ser comparados, não tanto para compreender um ou o outro, mas para compreender os nossos tempos e nos compreendermos a nós mesmos”; “A imagem dos campos de concentração alemães como o pior elemento do nacional-socialismo é uma ilusão, uma miragem escura sob um deserto desconhecido.

O destino dos seus prisioneiros era muito semelhante ao dos detidos do Gulag, na União Soviética, entre 1941 e 1943”;” Auschwitz foi, de facto, um importante local do Holocausto: cerca de 1/6 dos judeus assassinados morreu ali. Mas, ainda que a fábrica de morte de Auschwitz tivesse sido o último complexo de morte em funcionamento, não corresponde ao expoente máximo da tecnologia da morte: os pelotões de fuzilamento, mais eficientes, matavam mais depressa, os locais de privação de alimentos e Treblinka matava mais depressa.”

A historiografia tem vindo a fugir à investigação de dados tão complexos. E o autor despede-se com uma advertência: “Não precisamos de leis da memória. Não precisamos da História para que as pessoas possam retirar dela lições individuais. Precisamos da História, sim, para nos tornarmos pessoas.

Os tabus criam tribos e a ignorância cria gangues. Só a História individualiza ao fornecer o tema comum a partir do qual se pode dar início à razão ética individual.”

De leitura obrigatória.

Mário Beja Santos

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